Pará

Escalpelamento ainda é realidade nos rios da Amazônia

Hoje, 28 anos depois, Regina ainda faz tratamento e vai ao médico de 3 em 3 meses. Foto Wagner Santana/Diário do Pará.
Hoje, 28 anos depois, Regina ainda faz tratamento e vai ao médico de 3 em 3 meses. Foto Wagner Santana/Diário do Pará.

Luiz Flávio

Regina Formigosa de Lima tinha 22 anos em 1995 quando saiu para passear de barco em Muaná, onde morava com os pais. Na volta para casa sentou na parte de trás do barco, que não tinha cobertura do eixo. Após baixar a cabeça onde mantinha uma vasta cabeleira longa, teve parte de seu cabelo enrroscado no eixo da embarcação. Teve 100% de seu couro cabeludo arrancado.

Após ser encaminhada para atendimento em Belém, ficou 5 meses internada e já fez 4 cirurgias reparadoras com remoção de pele da perna para enxertar da cabeça. Hoje, 28 anos depois, Regina ainda faz tratamento e vai ao médico de 3 em 3 meses. “A pele colocada na cabeça é muito frágil e qualquer baque mais forte ela descola…. Precisamos ter muito cuidado. É uma ferida que nunca cicatriza, tanto física como emocionalmente…Não é vaidade. Precisamos muito de atendimento”, relata

Levantamento da Capitania dos Portos da Amazônia Oriental (CPAOR) mostra que entre 2006 e 2022 houve 173 episódios de acidentes de escalpelamento nos rios do Estado do Pará. O ano de 2009 foi o que apresentou o maior número de acidentes na série histórica, com 22 casos. A partir desse ano, os números alcançaram patamares mais baixos, fechando 2022 com 7 ocorrências no Pará e Amapá.

Nesse tipo de acidente, que atinge principalmente mulheres ribeirinhas de cabelos longos, o couro cabeludo é abruptamente arrancado em contato com o eixo em alta rotação do motor de pequenas embarcações. Poucos segundos bastam para uma vida ser tomada por sequelas físicas e danos psicológicos.

A Capitania no Pará registrou até o ano passado 21 mil embarcações, dentre as quais 6.163 seriam somente de uso para o transporte de passageiros. Mas a estimativa é que aproximadamente 40 mil embarcações naveguem em condições clandestinas, fator decisivo para ocorrências de escalpelamento em pequenas embarcações.

Para aprofundar o estudo sobre esse tema, a Fundação Amazônia de Amparo a Estudos e Pesquisas (Fapespa) elaborou a nota técnica “Menina, mulher e ribeirinha da Amazônia paraense e o acidente em embarcações com escalpelamento”, com levantamentos sobre esse tipo de acidente e como as políticas públicas no Pará contribuem na erradicação dos casos.

A fundação utilizou dados fornecidos pela CPAOR e coleta de campo realizada na “Casa de Apoio Espaço Acolher”, vinculado à Santa Casa de Misericórdia do Pará, referência no Estado pelo acolhimento de vítimas de escalpelamento, que mantém fichas de atendimento datadas de 1964 a 2023, o que permitiu um amplo panorama sobre o histórico de acidentes.

O levantamento mostra que apenas três estados registram escalpelamento na região: Pará, Amapá e Amazonas. Peculiaridades da região contribuem para o surgimento de casos: a região Amazônica tem a extensão de 8 milhões de km², com a maior bacia hidrográfica do planeta. Na Bacia Amazônica há 20% da água doce superficial, além dos maiores rios do mundo, como Tapajós, Trombetas, Xingu, e claro, Rio Amazonas, o mais extenso do mundo.

Nesse contexto, percorrer áreas de grandes ou de pequenas extensões de rios, igarapés e furos requer o uso de embarcações. Para ribeirinhos e povos tradicionais que moram às margens dos rios da Amazônia muitas vezes a água é o único caminho possível para conseguirem realizar deslocamentos cotidianos.

A ocorrência dos escalpelamentos, de acordo com a Fapespa, ocorre, majoritariamente, com mulheres que ainda são meninas, residentes às margens dos rios e furos de rios da Amazônia paraense. Como no caso de Regina. O estudo identificou que 98% das pessoas vítimas de acidentes com escalpelamento são mulheres e 2% são homens.

IDADES

Programa do Governo do Estado ajuda famílias em vulnerabilidade a construir, reconstruir e ter condições de moradia dignas. Foto: Alex Ribeiro/Ag. Pará

Além de serem mulheres, 67% das vítimas são crianças e adolescente entre 2 e 18 anos de idade. Pessoas adultas e idosas corresponderam a 33% dos casos. Ao verificar os percentuais por faixas etárias, com base nos atendimentos feitos pelo Espaço Acolher, o estudo mostra ainda que o maior número de eventos de acidente de escalpelamento envolve crianças de 7 a 9 anos de idade (24%); seguido de crianças de 10 a 12 anos (19%); e crianças de 13 a 15 anos (10%).

Para Marcio Ponte, diretor na Diretoria de Estudos e Pesquisas Socioeconômicas e Análise Conjuntural (Diepsac) da Fapespa, responsável pela elaboração da nota, é imprescindível a continuidade e aprimoramento dos processos de garantia dos direitos humanos das vítimas escalpeladas.

“As meninas e mulheres ribeirinhas acometidas pelo escalpelamento não têm arrancados somente seus cabelos e couro cabeludo, mas têm agravadas suas condições de vida, que antes do episódio já poderiam apresentar um contexto de vulnerabilidade social. Com um acidente como este, a vida tende a ficar mais difícil, em um cenário já desfavorável pelo estigma de ser mulher e de ser ribeirinha”, aponta.

Regina trabalha como peruqueira na Organização dos Ribeirinhos Vítimas de Acidente de Motor (ORVAM) desde a fundação da ONG, em 2011. Hoje a entidade possui 166 mulheres vítimas de escalpelamento cadastradas, que recebem a doação e perucas confeccionadas na própria organização.

E lamenta o fato de quase não haver mais doação de cabelo para a confecção das perucas por falta de informação das pessoas. “Se as pessoas soubessem o trabalho que fazemos aqui e quanto ajudamos a recuperar a auto estima dessas mulheres, mudariam de opinião. Sofremos muito preconceito e discriminação por não temos mais cabelo. Cada história e uma história de muito sofrimento”, afirma.

Em Belém, o atendimento às vítimas de escalpelamento ocorre, desde 2002, na Fundação Santa Casa de Misericórdia do Pará, por meio do Programa de Atendimento Integral às Vítimas de Escalpelamento (Paives), que busca reduzir as sequelas físicas e mentais do escalpelamento durante e depois do acidente, tanto para a vítima como para sua família.

Entre as ações governamentais na luta pela erradicação do acidente, foi criada a Comissão de Erradicação dos Acidentes com Escalpelamento (CEEAE) em embarcações do Pará, que aglutina a cooperação de várias instituições do Estado na perspectiva de intervenção intersetorial na questão, a partir de abordagens multiprofissionais.

 

GOVERNO DÁ ASSISTÊNCIA ÀS VÍTIMAS DE ACIDENTES

A Secretaria de Estado de Saúde Pública (Sespa), tem como atribuição realizar ações de prevenção, capacitação de profissionais, articulação e mobilização de colaboradores do Estado e sociedade civil para o enfrentamento da questão.

A Secretaria de Estado de Assistência Social, Trabalho e Renda (Seaster) atua viabilizando o acesso de vítimas a programas, projetos, serviços e benefícios da política pública.

A Casa de Apoio Espaço Acolher é uma residência de acompanhamento prolongado, com atendimento hospitalar, a partir da atuação da Secretaria de Estado de Educação (Seduc), com infraestrutura para a garantia do bem-estar às vítimas de escalpelamento em tratamento na cidade de Belém. O espaço atende pessoas e famílias de diversos municípios, a maioria oriundas das regiões ribeirinhas, assim como as vítimas de escalpelamento.

Em 2009 foi criada a Lei Federal de proteção e atenção às vítimas de acidente de escalpelamento, determinando a obrigatoriedade no uso de proteção do eixo do motor e de partes móveis de embarcações. Em 2010 outra Lei reforçou a luta, estabelecendo o dia 28 de agosto como o Dia Nacional de Combate e Prevenção ao Escalpelamento.

A Capitania dos Portos, desenvolve várias ações como fiscalização de embarcações, instalação gratuita da cobertura do eixo de pequenas embarcações, campanhas de prevenção, entre outras.

De 2009 a 2022, a Marinha implantou 5.339 eixos de cobertura de embarcações. A instalação da cobertura do eixo nas pequenas embarcações é um procedimento crucial pela sua eficácia na erradicação dos acidentes com escalpelamento. Vários outros órgãos ancoram serviços e ações para o enfrentamento aos acidentes com escalpelamento.

Para Marcel Botelho, presidente da Fapespa, a fundação desempenha um papel social importante de informar a população, as autoridades, aos tomadores de decisão sobre dados que permeiam a população. “No caso do escalpelamento, conhecer a realidade, acompanhar esse número de casos, as suas causas, as medidas que estão sendo tomadas e os seus efeitos é fundamental para sabermos se estamos no caminho correto, no caminho de solucionar o problema. Além disso, os dados nos permitem saber quais outras ações devemos tomar”.