
Ananindeua - Uma empresa que funciona em uma casa sem placa de identificação e que não possui nem sequer um carro de passeio, a Socorro Construções e Serviços, acaba de ganhar um contrato de R$ 12 milhões da Prefeitura de Ananindeua, a quem alugará, durante um ano, 25 caminhões e 5 microtratores, para a coleta de lixo da cidade.
Ao final de um ano, o aluguel de cada caminhão terá custado aos cofres públicos R$ 443.280,00, praticamente o preço de um novo. Mas o pior é mesmo o fato de que a Socorro Construções nem sequer é a dona desses caminhões. Que pertenceriam, na verdade, à Norte Ambiental Gestão e Serviços, cujo proprietário, o empresário Cleiton Teodoro da Fonseca, é amigo do prefeito Daniel Santos.
O contrato foi realizado através de uma dispensa licitatória, para a qual a Prefeitura alegou urgência e emergência, dada a “impossibilidade de continuidade dos serviços (de limpeza urbana) pelos contratos vigentes”. E, também, devido à revogação da licitação de R$ 180 milhões para a coleta do lixo, repleta de irregularidades, que tentou realizar.
Ela representava R$ 100 milhões a mais do que os contratos das duas empresas que hoje realizam o serviço, a Recicle e a Terraplena, que somam menos de R$ 80 milhões. Na licitação milionária, foram vários os indícios de que a Prefeitura pretendia entregar a maior parte dos novos contratos do lixo justamente à Norte Ambiental. Tanto que a empresa foi flagrada executando o serviço antes mesmo do resultado da licitatório.
A Socorro Construções funciona em uma casa térrea, na Vila Soares, passagem Santo Antonio, no bairro do Coqueiro, em Ananindeua. Lá também é a residência do dono da empresa, Francisco Israel da Silva. Não há placa indicativa de que ali funcione um estabelecimento empresarial.
Assim como também não há espaço para 25 caminhões de lixo e 5 microtratores, ou para as cerca de 60 máquinas pesadas, para conservação de ruas, que ela também aluga à Prefeitura. É apenas uma casa de classe média, com 108 metros quadrados, segundo o alvará, com uma garagem onde só cabem uns três carros. Na Junta Comercial do Pará (Jucepa) não há registro de que a empresa possua uma filial, um terreno, ou qualquer instalação para abrigar a frota que alugou.
Os balanços contábeis da Socorro Construções também indicam que ela não possui nem esses caminhões, nem maquinário pesado ou, ao menos, veículos comuns. O balanço é o documento que registra todos os bens e movimentações financeiras de uma empresa. E os balanços que a Socorro Construções apresentou para a obtenção desse contrato com a Prefeitura (e que devem ser, portanto, os mais recentes) mostram que ela não possuía nem sequer um veículo, em 2022 e 2023.
Seu “imobilizado” (ou, de modo simples, os seus bens palpáveis e duráveis) se resumia a computadores e periféricos. Uma situação bem diferente da Norte Ambiental: no terreno dela, no município de Marituba, fotografias obtidas pelo DIÁRIO mostram vários caminhões para a coleta de lixo, alguns já até adesivados com a logomarca da Prefeitura de Ananindeua.
Contratação da “empresa” foi realizada através de dispensa de licitação eletrônica
Investigação sobre a Socorro Construções
O repórter Paulo Cidadão, da TV RBA, esteve no endereço da Socorro Construções e conversou com o proprietário, Francisco Israel da Silva. O empresário admitiu que alugou os caminhões de uma empresa, para realugá-los à Prefeitura. Mas negou que tenha sido da Norte Ambiental. No entanto, não quis informar de quem os alugou: “aí, você está querendo saber demais”, disse ele. Meio irritado, mandou que o repórter fosse buscar “qualquer esclarecimento sobre o lixo” junto à Prefeitura.
“Eu já fiz a minha parte: ganhei a licitação de urgência e emergência que eles pediram, que foi colocada no portal de compras públicas. Eu ganhei, botei os caminhões na rua, pronto”, afirmou. Também segundo ele, os caminhões não estão no terreno da Norte Ambiental, em Marituba, e sim na Secretaria de Serviços Urbanos (Seurb) de Ananindeua.
O problema é que as afirmações de Francisco Israel não batem com a realidade. Como mostrou o DIÁRIO, caminhões da Norte Ambiental já foram flagrados realizando a coleta de lixo, em Ananindeua, embora a empresa não possua contrato com a Prefeitura para isso. Os trabalhadores que estavam nesses veículos usavam uniformes com a logomarca da Seurb.
Os caminhões, no entanto, não traziam qualquer identificação da empresa à qual pertencem. Mas as placas permitiram confirmar junto ao Detran, o departamento estadual de Trânsito, que estão em nome de uma filial aberta pela Norte Ambiental na cidade de Sorocaba, no estado de São Paulo. Idem para os caminhões de lixo que se encontram no terreno da empresa, em Marituba.
Dispensa de Licitação e Contratação
A contratação da Socorro Construções foi realizada através de uma dispensa de licitação eletrônica, nova modalidade de “contratação direta” (ou seja, sem licitação), criada pela nova Lei das Licitações, a 14.133/2021. Assim como a dispensa licitatória da legislação anterior, ela só se aplica a algumas situações. Entre elas, casos emergenciais, para impedir a descontinuidade de serviços públicos essenciais.
No entanto, esse tipo de contratação não pode exceder um ano, tempo em que se deverá concluir o processo de licitação, para a aquisição normal daquele bem ou serviço. Além disso, é preciso também cumprir algumas exigências. Como a prévia pesquisa dos preços de mercado e uma espécie de leilão virtual, no qual as empresas apresentam online as suas propostas, para o contrato em disputa. Esse “leilão virtual” foi realizado pela Prefeitura de Ananindeua no último 24 de março. Dele participaram apenas três empresas. No dia 28, foi assinado o contrato com a Socorro Construções.
O problema, além do alto valor do aluguel desses caminhões, é que a Prefeitura não explica, no processo dessa dispensa licitatória, o porquê de não poder continuar com a coleta de lixo através da Recicle e da Terraplena. É verdade que a Prefeitura encerrou o ano passado com mais de R$ 40 milhões em pagamentos atrasados às duas empresas.
Mas também é verdade que a licitação que gerou os contratos delas foi concluída no final de 2023. Ou seja, é muito recente para esse tipo de serviço, que é contínuo, e cuja prorrogação contratual pode ser estender por até dez anos. Assim, se quisesse evitar uma “emergência”, bastaria que a Prefeitura tivesse prorrogado os contratos das duas empresas por mais um ano, ou até o final de uma nova licitação.
Denúncias e Implicações Legais
Na última, quinta-feira, 4, o advogado Ewerton Almeida Ferreira protocolou denúncia contra o prefeito Daniel Santos e a Norte Ambiental, no Ministério Público do Pará (MPPA), Tribunal de Contas dos Municípios do Pará (TCMPA) e na Diretoria Estadual de Combate à Corrupção (Decor), da Polícia Civil. Segundo ele, o fato de a empresa vir executando a coleta de lixo, em Ananindeua, sem licitação ou contrato, pode configurar improbidade administrativa, e crimes previstos no artigo 337 do Código Penal, com penas que, somadas, podem chegar a 19 anos de prisão.
Na denúncia, o advogado cita as reportagens do DIÁRIO sobre o caso, e pede que MPPA, TCMPA e DECOR investiguem a transação. Um dos fatos que mais parece ter chamado a atenção dele foi a insistência da Prefeitura em prosseguir com uma série de irregularidades, na licitação de R$ 180 milhões para a coleta do lixo. Tanto que a licitação acabou revogada três vezes seguidas. E a terceira foi demolidora.
A pedido dos técnicos do TCMPA, o conselheiro Antônio José Guimarães, “relator” do processo (ou seja, o encarregado do caso) expediu uma “cautelar” (uma medida urgente), devido ao risco de graves prejuízos aos cofres públicos. A ordem foi para que a Prefeitura suspendesse a licitação, sob pena de multa. E que só divulgasse um novo Edital depois que o documento passasse pela análise do TCMPA. A decisão de Guimarães foi homologada (confirmada), por unanimidade, pelos conselheiros do tribunal.
E é aí que reside um dos problemas, diz o advogado: apesar dessa revogação, a coleta do lixo já vem sendo executada, “de forma absolutamente ilegal”, por uma nova empresa, a Norte Ambiental. Segundo ele, no último 26 de março, às 8h51m, um caminhão de placa TJQ4J12, de propriedade da Norte Ambiental, foi flagrado recolhendo lixo, na Rodovia Mário Covas, em frente ao Pronto Socorro Municipal da cidade. O mesmo caminhão já havia sido flagrado pelo DIÁRIO, em 14 de fevereiro, recolhendo lixo, pela manhã, nas áreas do Icuí-Guajará e Icuí-Laranjeira.
Na denúncia, Ewerton Almeida também menciona as informações sobre a proximidade do prefeito Daniel Santos com o empresário Cleiton Teodoro da Fonseca, dono da empresa. E um exemplo disso foi o uso de um avião da Norte Ambiental, pelo prefeito, para viagens a municípios paraenses, durante a campanha eleitoral do ano passado. Um fato que, para o advogado, indica “uma troca de favores” entre os dois.
O advogado pede que todos os envolvidos na transação sejam investigados e, se culpados, sejam responsabilizados pelas irregularidades, com base na Lei 8.429/1992, de Improbidade Administrativa, dados os “fortes indícios” de direcionamento na licitação que a Prefeitura tentou realizar para a coleta do lixo, “possivelmente favorecendo a empresa Norte Ambiental”. Além disso, aponta indícios de crimes licitatórios, previstos no Código Penal: contratação direta ilegal, frustração do caráter competitivo da licitação e patrocínio de contratação indevida.