Ana Célia Pinheiro
O Ministério Público do Pará (MP-PA) e a Polícia Civil do Estado não receberam qualquer denúncia sobre supostos crimes contra crianças da Ilha do Marajó, que teriam sido “descobertos” pela senadora eleita Damares Alves (PL), quando era ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, do Governo do presidente Jair Bolsonaro. Em declarações, no último sábado (08/10), a uma plateia de evangélicos da Assembleia de Deus Ministério Fama, em Goiânia, capital do estado de Goiás, ela disse que crianças de 3 ou 4 anos da Ilha do Marajó, traficadas para outros países, teriam seus dentes arrancados, “para que não mordam na hora do sexo oral”, e que seriam alimentadas apenas com comidas pastosas, “para o intestino ficar livre, para a hora do sexo anal”. O Ministério Público Federal (MPF) também não possui informações sobre o caso.
Damares foi ministra de Bolsonaro desde o primeiro ano de governo dele, 2019, até o último 31 de março, quando se desincompatibilizou, para concorrer ao Senado, pelo Distrito Federal. Na palestra aos evangélicos, ela disse que o Ministério possuiria até imagens dessas crianças, e também de bebês com apenas oito dias de vida sendo estuprados. Segundo ela, o número de estupros de recém-nascidos teria “explodido” nos últimos anos e vídeos do estupro de crianças são vendidos entre R$ 50 mil e R$ 100 mil.
Ela não esclareceu, porém, quando teria feito essas “descobertas” e se encaminhou denúncia ao Ministério Público e à polícia, para apuração do caso, resgate das crianças e punição dos criminosos. Mas, aparentemente, nada fez: ontem, o MPF enviou ofício à Secretaria Executiva do Ministério da Mulher, Família e dos Direitos Humanos, pedindo informações detalhadas sobre os supostos crimes “descobertos” por Damares, e se houve denúncia à polícia ou ao MP. O documento é assinado por sete procuradores, incluindo o coordenador do MPF no Pará, Felipe Moura Palha e Silva.
Já a Secretaria de Segurança Pública e Defesa Social (Segup) disse que enviará ofício à ex-ministra, para que ela repasse “os conteúdos citados, para que sejam apurados minuciosamente, e que, ainda que de comunicação obrigatória por qualquer agente público que tome conhecimento, até o momento não foram denunciados para apuração da PCPA (Polícia Civil do Pará)”. Na nota à imprensa, a Segup também informa que os órgãos de segurança realizam ações integradas de combate à exploração sexual infantil, rotineiras e especiais, além de campanhas conjuntas com o Poder Judiciário, para a divulgação dos canais de denúncia, no arquipélago marajoara.
Na palestra aos evangélicos, Damares chegou a insinuar uma espécie de apoio a esses supostos crimes, por parte da imprensa, do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Congresso Nacional, considerados inimigos pelos bolsonaristas. Segundo ela, quando foi informado da situação, “Bolsonaro disse: nós vamos atrás de todas elas (as crianças). E o inferno se levantou contra esse homem. A guerra contra Bolsonaro que a imprensa levantou, que o Supremo levantou, que o Congresso levantou, acreditem, não é uma guerra política, é uma guerra espiritual”.
Na verdade, porém, as “revelações” de Damares, às vésperas do segundo turno das eleições presidenciais, são muito semelhantes a notícias falsas (fake news) que circulam há anos na “deep web”, uma espécie de subterrâneo da internet, utilizado para a prática de todo tipo de crimes, e onde pedófilos criaram histórias sobre a mutilação dos corpos de crianças, adolescentes e mulheres, para a transformação em escravas sexuais.
As “revelações” da ex-ministra também se assemelham às “denúncias” da Q-Anon, uma seita ou teoria conspiratória de extrema-direita dos Estados Unidos, que apoiou a tentativa de reeleição do ex-presidente daquele país, Donald Trump. Segundo a seita, Trump seria uma espécie de “herói” ou “messias”, na luta contra uma rede mundial de exploração sexual infantil, formada por pedófilos e adoradores de satanás. Na verdade, essa rede nunca existiu, mas é usada para “demonizar” adversários políticos e criar pânico moral na sociedade.
A Q-Anon é apoiada por fundamentalistas religiosos, grupos neonazistas e patriarcais, que defendem a supremacia branca e o poder absoluto dos homens sobre as mulheres, os filhos e os bens da família. A seita e integrantes desses grupos participaram da invasão do Capitólio, em 2019, após a derrota de Trump. Eles também apoiam o presidente Bolsonaro, que possuiria ligações a grupos neonazistas há cerca de duas décadas, segundo a doutora em Antropologia Social pela Unicamp, Adriana Dias, que pesquisa o movimento neonazista no Brasil.
POLÊMICAS
Essa não é a primeira polêmica envolvendo Damares, que é pastora evangélica, e as crianças da Ilha do Marajó. Em 2019, ela chocou o Pará e o Brasil ao afirmar que crianças marajoaras eram estupradas por não usarem calcinhas, e propor a instalação de uma fábrica dessa roupa íntima, naquele local. Na época, a juíza do Tribunal Regional do Trabalho da 8a Região Elinay Melo, disse à Agência Pública que um dos graves problemas da fala de Damares era a tentativa de culpar as crianças e adolescentes, pelas violências que sofrem: “Repassa para a vítima e para as famílias que estão naquela condição de extrema vulnerabilidade, de ausência total do Estado e de condições mínimas de vida, a responsabilidade pela violência”.
A nova polêmica, agita as redes sociais: internautas, incluindo parlamentares, afirmam que o fato de a ex-ministra ter feito as suas “revelações” a uma plateia na qual havia várias crianças, seria crime. Outros dizem que ela teria cometido crime, também, ao não denunciar imediatamente o caso à polícia e ao MP.