O saber desenvolvido e perpetuado pelos povos e comunidades tradicionais ao longo dos séculos são fundamentais para o entendimento de como é possível promover a floresta em pé e os rios fluindo. Não à toa, um levantamento realizado pelo MapBiomas e divulgado pelo Observatório do Clima constatou que as terras indígenas (TI) são as áreas mais preservadas do Brasil.
Entre os anos de 1985 e 2023, as TIs perderam apenas 1% da sua vegetação nativa, enquanto, no mesmo período, as terras privadas perderam 28%. Dados que apenas reforçam a contribuição inestimável dessas comunidades para a preservação ambiental.
O professor do Instituto de Ciências Biológicas da Universidade Federal do Pará (UFPA) e docente nos programas de Pós-graduação em Zoologia (UFPA/MPEG), Ecologia (UFPA/Embrapa Oriental), Ecologia Aquática e Pesca (UFPA) e Ecologia e Conservação da Biodiversidade (Unemat), Leandro Juen, lembra que, hoje, os territórios tanto de comunidades quilombolas, quanto dos povos originários, funcionam como barreiras muito importantes contra o desflorestamento e a degradação ambiental.
“Essa proteção não é fruto de grandes estruturas de fiscalização, que na maioria das vezes essas populações não estão organizadas de forma a fiscalizar tanto o seu território, mas sim em um profundo vínculo desse conhecimento e desse respeito que eles têm, da visão sobre a terra, e sobre a floresta e sobre toda essa diversidade”.
Muitas vezes, os povos e comunidades tradicionais são protagonistas silenciosos na preservação da floresta na Amazônia. O professor destaca que grande parte dos territórios que eles vivem abriga uma das maiores biodiversidades da Amazônia e do planeta. Por isso, é tão importante ‘jogar luz’ sobre o que esses povos fazem de maneira tão natural, em seus territórios.
“Essa contribuição para a conservação é porque o modo de vida que eles têm é baseado no uso sustentável dos recursos naturais. Por exemplo, por gerações e gerações eles convivem de forma muito harmoniosa com as condições do ambiente e realizando um manejo cuidadoso do ambiente, o que vai garantir um equilíbrio ecológico e, ao mesmo tempo, a continuidade dos ciclos naturais”, considera.
“Então, eles têm um conhecimento muito grande sobre como funciona o ciclo das espécies, dos organismos que vivem lá, sabem quando são as épocas que pode caçar, quando pode pescar, quando não pode porque esse grupo está em reprodução”.
Alimentados com esses saberes, essas comunidades conseguem retirar o alimento da floresta, ao mesmo tempo em que garantem que a natureza consiga seguir o seu ciclo natural. Em um exemplo prático, Leandro Juen considera que se existem 20 antas em determinado território e os povos que lá vivem matam duas ou três para a sua alimentação, o ciclo natural da espécie permitirá que a população de antas continue de forma estável no território.
O professor considera que, no caso, por exemplo, das comunidades indígenas, esse cuidado está na própria forma como a floresta está profundamente entrelaçada com a forma de visão que eles têm do mundo. “É que a terra não é só um recurso, não é só um meio de subsistência deles. Eles tratam a terra como se fosse um ente vivo. E eles têm essa relação com a terra, com o ambiente, que é uma relação material, porque eles usam ela como recurso, mas que também é espiritual e cultural. Então, é diferente da forma que nós vemos”, analisa.
“As práticas tradicionais deles – quer seja a agricultura, caça, pesca e a coleta, porque eles são povos mais coletores do que da agricultura – são muito pautadas em regras e questões de uso coletivo. Vai ter um período de descanso da terra, então eles usam muito as roçadas de coivara, por exemplo, que são pequenas áreas que são usadas por um período e que depois ficam descansando para dar tempo de se recuperar”.
Conhecimento Tradicional e a Preservação Ambiental
Da mesma forma, as comunidades quilombolas também salvaguardam um conhecimento preciso sobre os ciclos da natureza, de forma a atuar para não interferir na regeneração dos ecossistemas. “Os quilombolas desenvolveram práticas agrícolas extrativistas e culturais muito interessantes, importantes, que favorecem essa biodiversidade e mantêm paisagens agroflorestais ou de desenvolvimento sustentável, que auxiliam tanto a produção, então, eles conseguem produzir para retirar o alimento, ao mesmo tempo que eles conservam o ambiente”, considera o professor.
“Uma outra coisa que é muito importante também é que eles têm uma visão na proteção dos ambientes aquáticos, das proteções de nascentes, a conservação da mata ciliar dos nossos igarapés que são muito importantes, e sempre mantendo a floresta em pé. Então, essa forma de visão que eles têm é diferente da nossa forma em que, muitas vezes, a gente vê tudo como só um recurso a ser explorado”.
CIÊNCIA
Leandro Juen destaca que houve uma mudança de cenário quando o que se conhece como ciência ocidental passou a entender o quão precioso é o saber dos povos originários e tradicionais. “A ciência começou a entender que todas as soluções para as mudanças climáticas, para a sustentabilidade, têm que vir a partir de soluções baseadas na natureza. E quem mais que convive, há séculos, mantendo a floresta em pé, os rios fluindo e com a água potável que os povos originários e as comunidades tradicionais?”, atenta. “Então, infelizmente, eu acho até que a gente demorou para entender que as soluções estavam muito próximas ao conversar e dialogar com esses povos”.
Projetos e Diálogos com as Comunidades
Essa visão já permeia alguns dos projetos desenvolvidos no âmbito da Universidade Federal do Pará. “Atualmente, nós temos alguns projetos grandes da universidade que estão, principalmente, buscando dialogar com as comunidades porque a gente acredita muito na contribuição que elas fazem”, aponta Leandro.
Entre os programas que já realizam esse diálogo com as comunidades, o professor cita o Instituto Nacional de Ciências e Tecnologia – Sínteses da Biodiversidade Amazônica (INCT-SinBiAm), o Programa de Monitoramento da Biodiversidade da Amazônia Oriental (PPBio-AmOr) e o Centro Integrado da Sociobiodiversidade Amazônica (CISAM), todos com sede na UFPA. Neles, os pesquisadores conseguem ir até as comunidades e trabalhar em conjunto, construindo perguntas, métodos e soluções para os desafios que a conservação ou a preservação trazem.
“Um exemplo de outro projeto é com os povos Panarás, onde há uma parceria entre a Conservação Internacional, a UFPA, o Museu Jardim Botânico do Rio de Janeiro, e onde nós estamos trabalhando com o monitoramento participativo no território deles”, explica ao professor, ao se referir ao projeto que tem como objetivo estabelecer um sistema de monitoramento da biodiversidade no Território Indígena Panará, localizado entre os estados do Pará e Mato Grosso.
Junto com os pesquisadores dessas instituições, também atuam os pesquisadores Panarás, que acompanham todo o processo, inclusive ajudando a definir as metodologias utilizadas.
“Então, existe uma troca muito grande de conhecimento. Neste momento, a gente está com 15 pessoas da nossa equipe lá, vão passar um mês com eles, aprendendo e tentando construir junto o conhecimento da biodiversidade. A gente acredita que só aliando forças, aliando o conhecimento, é que a gente consegue ter, de fato, soluções eficazes, duradouras e justas contra as mudanças climáticas”.