Cintia Magno
Cada vez mais integrados às novas configurações familiares, os animais de estimação podem deixar um imenso vazio quando é chegada a hora do descanso final. Ainda que o luto pela perda de um pet ainda não seja reconhecido socialmente, a dor sentida por quem perde um companheiro de toda a vida é real.
Mestre em psicologia social, com formação em tanatologia, perdas e luto, a psicóloga Andrielli Kechichian aponta que o luto pela perda de um animal de estimação é um luto não reconhecido e não validado pela sociedade, o que significa dizer que, em muitos casos, os tutores que perdem seus pets não encontram espaço para chorar a sua perda sem críticas ou julgamentos. Neste cenário, não é incomum que pessoas que vivenciam esse momento de dor ouçam que ‘era apenas um animal’ ou que ‘basta adotar outro cachorro’, por exemplo.
Além de não ajudar, esse tipo de comentário pode trazer ainda mais sofrimento para quem está passando pelo processo de luto. “Assim como o amor, o luto é um processo único, individual, particular e intransferível. Ninguém vivencia o amor da mesma maneira, assim como ninguém vivencia o luto da mesma maneira”, reforça Andrielli, que há quase 30 anos atua como psicoterapeuta familiar. “Hoje a maioria das famílias são famílias multiespécies, com vínculos entre humanos e animais e esses vínculos são parte de uma vida inteira”.
A psicóloga lembra que a ideia do cão que é acolhido com a função de vigiar a casa está cada vez mais superada pela ideia do animal como um membro da família. Com isso, as relações entre seres humanos e animais também vão se modificando e fortalecendo vínculos.
“O que a gente tinha antes era, principalmente, o cão que vigiava a casa e que a comida que sobrava era a dele, ele não adentrava a casa, ficava no quintal. Mas os espaços foram reduzindo e, com esse espaço reduzido, o cão veio para dentro de casa, mais especificamente para nossa cama. A nossa rotina, hoje, é dividida com a rotina do animal, o orçamento familiar é dividido com o do animal. Isso fez com que mudasse a identidade da nossa família, que passou a ter vínculos afetivos entre a espécie humana e animal”.
Nesta configuração, quando um desses animais que fazem parte da família partem, a dor deixada é de um membro da família que passa a não estar mais presente. Dessa forma, a família precisa aprender a ressignificar essa ausência e, quanto maior a intensidade do amor e do vínculo entre tutor e animal, maior a dor do luto. “Ninguém sabe como é aquela dor que a pessoa está sentindo, aquela dor é um processo único. O luto é daquela pessoa e de mais ninguém, ninguém tem condições de saber o tamanho da dor daquela ausência. E luto é um processo para ser vivenciado porque não existe mais a gente sem aquele amor”.
Foi ao considerar este cenário que Andrielli decidiu criar um grupo de apoio para pessoas que passam pelo processo de luto pela perda de um animal. Ainda em meio à pandemia da Covid-19, ela criou um grupo online, o Grupo Aconchego Luto Pet, onde pessoas de diferentes regiões do país se reúnem para compartilhar suas experiências. “Na família multiespécie, se o meu animal não pode ir para algum lugar, eu também não vou. Então, quando ocorre o luto, a pessoa vai ter que ressignificar a sua vida toda porque, agora, a sua rotina foi toda modificada e o cérebro precisa de um tempo para ressignificar tudo isso. Quem perde um animal de estimação, perde um membro da família”, considera Andrielli, que também possui pós-graduação em cuidados paliativos e, hoje, trabalha com cuidados paliativos dentro do espectro da medicina veterinária. “A gente vê muitas coisas que dificultam a pessoa passar por esse luto porque é um luto não reconhecido, por isso eu criei o grupo de acolhimento. Lá o tutor coloca essa dor e não existe um julgamento porque na nossa sociedade existe o que chamamos de “fiscais de luto””.
Tutores usam espaço virtual para se apoiarem
Foi após a perda do cãozinho Bogotá que a relações públicas Aline Maia encontrou no grupo on-line o apoio que precisava para vivenciar o seu luto. Natural de Goiânia, Aline mora em Belém há 30 anos e no grupo consegue dividir experiências com pessoas que moram em estados como Bahia, São Paulo, Rio Grande do Sul e que passaram ou estão passando por situação semelhante à dela. “Todas as quintas a gente tem live falando sobre algum tema, uma vez no mês a gente tem a roda de conversa, que é quando a gente se vê e conversa sobre vários assuntos. A gente chora, a gente ri e todos os dias a gente se fala pelo WhatsApp”.
Aline conta que tudo começou quando sua família perdeu o Bogotá, um buldogue inglês que tinha uma deficiência visual e foi adotado. Após um passeio, no dia 18 de novembro de 2023, o cãozinho acabou tendo um mal súbito e não resistiu, deixando uma imensa saudade em toda a família. “Aquilo, pra gente, foi uma perda sem precedentes porque parecia que a gente já conhecia ele de outras vidas. E quando você perde um animal, você fica sem chão”, considera a relações públicas. “Aí, buscando na internet sobre esse luto ou alguma psicóloga que falasse desse luto, eu cheguei ao grupo. Quando você perde um pet, você guarda aquilo para você, ainda mais se você convive com pessoas que não gostam de animais, que não entendem essa dor porque acham que é só um animal. Então, você acaba guardando aquela dor pra si e ali no grupo a gente começa a ter um entendimento dessa dor”.
A partir do acolhimento de outros tutores que conhecem a perda, Aline conta que conseguiu compreender melhor e aprendeu a lidar com a dor pela partida do Bogotá e com as outras que, infelizmente, vieram em seguida. “Cinco meses depois que eu entrei no grupo eu perdi mais uma cachorrinha, a Ela. Ela era epilética, ela fazia tratamento, mas a gente tinha noção de até quando ela ia permanecer por aqui. Um dia ela passou mal, como das outras vezes, mas ela não resistiu. Ela faleceu dia 21 de Março. A perda da Ela foi difícil, mas o entendimento já era outro porque eu já participava do grupo”, lembra. “Então, eu tive um luto sobreposto e a gente ainda teve outro luto que foi a perda do meu pitbull de 13 anos, o Thor. Ele já estava bem idoso, bem debilitado. Com o Thor o entendimento já foi outro também. Ainda me dói, mas você aprende a lidar com ela porque o luto passa, mas a saudade fica”.
O entendimento de que esse luto precisa ser vivenciado também chegou à professora Carine Rose através do grupo de acolhimento. Natural de Alagoas, em Pernambuco, ela encontrou nos encontros virtuais com outros tutores de todo o Brasil uma forma de desabafar sobre a dor sentida com a partida de um cãozinho que ela resgatou das ruas. “Eu já alimento alguns animais de rua, e eu alimentava esse cãozinho há cerca de um ano, até que teve um período em que ele apareceu mais abatido, sem querer comer, e eu achei estranho porque ele sempre comeu muito bem. Então, eu decidi levar ele ao veterinário”, conta, ao lembrar que o episódio ocorreu há pouco mais de dois anos e meio. “No veterinário foi constatado que ele tinha cinomose, que é uma doença terrível que mexe com os nervos e vai tomando o animal. Ela pode ter cura, mas esse caso não foi assim”.
Como o cãozinho não podia ficar internado, já que a doença é contagiosa, Carine levou o animal para receber os cuidados necessários dentro de casa, onde até então ela tinha apenas gatos. Fazendo o possível para prestar toda a assistência que precisasse, ela cuidou do cão até o último momento. “Aos poucos ele foi perdendo os movimentos porque a doença mexe com o sistema digestório, então, ele não conseguia comer sozinho. E eu nunca tive cachorro, eu tenho gatos, mas eu fui ajudando ele em todo esse processo”, lembra. “Esse foi o primeiro cachorrinho que eu tive um contato mais profundo e eu cuidei dele somente por dois meses porque a doença foi se desenvolvendo de um jeito muito ruim”.
Quando a situação do cão chegou a um estágio muito crítico, Carine ouviu do médico veterinário que o animal estava sofrendo e que não iria melhorar, portanto, o recomendável seria fazer a eutanásia. Mesmo em meio a todo esse processo, Carine conta que não estava preparada para a partida. “Eu nunca tinha perdido um animal. Eu não tinha ideia do luto animal. Até eu me questionava, sem entender o motivo: ‘mas, Carine. Era um cachorro que nem era seu direito, por que tanto sofrimento?’. Foi aí que eu fui pesquisar na internet”, lembra. “Eu entrei no grupo e fiquei ali quietinha. Na primeira reunião online, eu quase não consegui falar, mas achei muito incrível aquilo porque, no geral, as pessoas não entendem, realmente. Principalmente porque, ao meu redor, a maioria das pessoas não têm animais e aí como entender o luto, se não entende nem o amor? Então, o grupo é uma ajuda incrível”.