Cintia Magno
Em meio às festividades em aclamação ao primeiro Imperador do Brasil, Dom Pedro I, meses após a Adesão do Pará à Independência do Brasil, ainda em 1823, a então Província do Grão-Pará e Maranhão vivenciaria uma tragédia que marcaria para sempre a história do povo paraense, o Massacre do Brigue Palhaço.
Resultando na morte de 256 brasileiros que lutavam por direitos iguais aos dos portugueses e que acabaram confinados no porão de um brigue – espécie de navio -, o trágico episódio completou 200 anos no último dia 20 de outubro de 2023 e, em memória do importante fato histórico, a Secretaria de Estado de Igualdade Racial e Direitos Humanos (SEIRDH) e a Secretaria de Estado de Cultura (Secult) mantêm até o dia 29 de outubro, no Museu do Estado do Pará, uma exposição que apresenta documentações históricas relacionadas à tragédia.
Secretária adjunta da SEIRDH, a historiadora Edilza Fontes lembra que existem muitos processos traumáticos na história do Estado do Pará que não são devidamente abordados, e o Massacre do Brigue Palhaço é um deles.
Exatamente por isso, a ciência histórica assume o dever de revisitar um processo já narrado, identificando as possíveis lacunas deixadas e apresentando um novo olhar. Foi esse cuidado que resultou na organização do evento que debateu o episódio do Brigue Palhaço em Belém e que, agora, leva ao público uma exposição sobre o tema.
“A gente quer que, todo ano, assim como é lembrada a Adesão do Pará, que se lembre o Massacre do Brigue Palhaço. Analisando o Massacre do Brigue Palhaço, a gente entende o descontentamento do povo paraense com a forma como foi feita a Adesão”, pontua.
“Em um governo democrático e que fala de reparação, isso aqui é uma reparação histórica que a gente está tentando fazer. Estamos tentando dizer que a violação dos Direitos Humanos ocorreu no Pará há muitos anos, que ela se deu desta forma, que ela produziu essas vítimas e é por isso que é importante a gente revisitar o passado, refletir sobre ele, produzir novas narrativas e tirar do silêncio esses heróis”.
Hoje conhecidos pelos nomes registrados nas documentações históricas, os revoltosos que morreram asfixiados no porão do navio podem ter a identidade devolvida através da história. Para a professora, eles foram heróis que não podem ter a sua história de luta silenciada.
“Eles lutaram por um Pará mais independente, por um projeto de Império que desse mais autonomia para as Províncias e que acabasse com as desigualdades e os privilégios dos portugueses, que durante o período da Colônia ficavam com os melhores cargos. Havia um processo muito grande de exploração do povo, de trabalhos forçados, então, eles não podem ficar esquecidos”.
Para compreender melhor o contexto em que o massacre ocorre, a professora da Faculdade de História da Universidade Federal do Pará (UFPA) e diretora do Centro de Memória da Amazônia (CAM/UFPA), Magda Ricci, relata que a grande tragédia se deu em outubro, em meio à quinzena nazarena e às comemorações em alusão ao aniversário de Dom Pedro I, nascido em 12.
O período de celebração, portanto, foi do dia 12 a 14 de outubro de 1823 e, no dia 15, representantes das tropas de todos os cinco regimentos do Pará se reuniram para pedir ao novo comandante, o almirante inglês John Grenfell, e à Junta de Governo que eles despedissem os portugueses ainda presentes no governo para que, finalmente, o Pará fosse governado por paraenses.
“Foi pensado que esses oficiais levassem pacificamente umas reivindicações e as principais delas eram que eles fossem pagos, já que se tinha um atraso muito grande de pagamento; que os oficiais portugueses – já que o Brasil havia se tornado independente – fossem substituídos e que a situação deles fosse regularizada porque a maioria ainda era das tropas portuguesas”, explica a historiadora. “Então, quatro deles levaram ao Grenfell essa reivindicação e o resultado é que os quatro foram presos”.
No dia seguinte, o Cônego Batista Campos, que integrava a Junta de Governo à época, leva uma segunda reivindicação semelhante, essa com mais de 400 assinaturas, ao presidente da Junta de Governo. A expectativa era de que, finalmente, as demandas fossem aceitas, mas, para pressionar a Junta, as tropas saíram às ruas, fizeram manifestações, foram até o Trem de Guerra, tomaram algumas lojas de comerciantes portugueses, gerando, portanto, alguma confusão na cidade.
“A gente tem que imaginar que isso tudo ocorreu na ocasião do Círio de Nazaré, então, a cidade estava cheia. Conclusão da história é que o Grenfell desceu as tropas que estavam nos navios de guerra e começou a matar as pessoas na rua”.
Magda destaca que na noite do dia 16 para o dia 17 de outubro ocorreram muitas fugas, mas já no dia 18 tiveram muitas prisões. Logo depois das prisões, Grenfell chamou os comandantes das tropas e pediu que escolhessem cinco líderes do movimento, que foram mortos como crime militar, sem julgamento.
“Os outros foram todos para as cadeias, que estavam em situação muito complicada. Eles estavam ameaçando fugir e a Junta, com o medo dessa fuga, manda prendê-los num navio que não era um navio muito novo e era um navio apreendido português, o São José Diligente, vulgo Brigue Palhaço”.
A partir daí, a historiadora relata que as versões do que aconteceu na madrugada que ficou conhecida como a do Massacre do Brigue Palhaço são muito contraditórias. A versão do primeiro processo é a de que os próprios presos se mataram, ao, diante do intenso calor, terem bebido água contaminada do rio. Já no segundo processo, aberto por ordem do próprio Imperador, se descobriu que os fatos não ocorreram bem assim, então, se apegou aos indícios para descobrir que, provavelmente, eles morreram envenenados e asfixiados.
Fato é que, na manhã seguinte à prisão dos revoltosos no porão do navio, encontraram 252 mortos e apenas quatro sobreviventes, sendo que depois de alguns dias apenas uma pessoa sobreviveria realmente.
Como consequência da tragédia, foi feito um primeiro processo que não resultou em punição alguma ao almirante Grenfell, responsável por enviar os presos para o porão do navio. Já em 1826, diante de um manifesto enviado por um paraense ao Parlamento, abre-se uma segunda devassa, onde se levantam os nomes das 252 vítimas, mas também sem punir os responsáveis pelo massacre.
Hoje, esse processo está sob a salvaguarda do Arquivo Nacional. “O grande mentor disso tudo, que foi o Grenfell, era necessário à Marinha Imperial. Ele foi para o Rio Grande do Sul, se tornou um herói de guerra e hoje é um homenageado em nome da Marinha brasileira. Então, naquela época ele foi absolvido do crime pela Justiça Militar e os outros envolvidos ou foram embora porque eram portugueses, ou foram perdoados também por crimes militares”.
Diante da não punição dos responsáveis, o sentimento de revolta e indignação da população pelo massacre iria, ainda, influenciar o cenário que resultou na ocorrência de outro grande episódio da história do Estado do Pará, a Cabanagem.
“Boa parte dos que morreram eram oficiais de baixa patente e que tinham vindo do interior certamente para o Círio e para as comemorações do aniversário do Imperador, para fazer as reivindicações, então, eles eram lideranças no interior. E a morte dessas lideranças foi fundamental para esse movimento, depois, ficar cada vez mais forte porque a injustiça foi grande e foi ficando maior. Então, certamente as raízes da hecatombe do Brigue Palhaço são o nascimento dos problemas que vão dar origem à Cabanagem, em 1835”.
Episódio está registrado em documentações oficiais do Arquivo Público do Estado do Pará
Se hoje essa história pode ser contada, muito se dá pela existência de documentações históricas que registram esses fatos. Formado pelas correspondências oficiais do Estado, o acervo do Arquivo Público do Estado do Pará, ligado à Secretaria de Estado de Cultura (Secult), inclui documentações sobre a tragédia do Brigue Palhaço, registros que compõem a exposição montada no Museu do Estado do Pará.
Diretor do Arquivo Público do Estado do Pará, o historiador Leonardo Torii relata que houve uma intensa troca de correspondências entre as autoridades do Pará e do Rio de Janeiro, relatando os eventos que resultaram no massacre. “Toda essa correspondência está preservada no Arquivo Público, por isso que o arquivo acaba se tornando o maior, se não o único lugar que tenha essa documentação que permite que se consiga entender, de fato, o que aconteceu naquela madrugada do dia 20 de outubro de 1823, claro, na voz do Estado”.
Um dos documentos é a ordem das autoridades para que se transferissem os presos que estavam na cadeia pública para o Brigue Palhaço. O segundo documento, com 11 páginas, é um relatório feito pelas autoridades locais à José Bonifácio, em que eles relatam em detalhes tudo o que aconteceu na madrugada do dia 20 de outubro, revelando a visão do Estado sobre o fato. Já o último documento mostra o relato de uma testemunha que estava no Prédio da Alfândega e que viu a movimentação no navio.
Já a segunda devassa instaurada para investigar as responsabilidades sobre o ocorrido e que, mais uma vez, inocentou o almirante John Grenfell é parte do acervo do Arquivo Público Nacional. Leonardo Torii destaca que o mais interessante desta documentação é a relação dos nomes das pessoas que foram mortas no porão do Brigue Palhaço, relação esta que também pode ser vista na exposição montada em Belém.
“Os nomes que estão na exposição a gente conseguiu na segunda devassa e isso é um respeito aos mortos. Essas pessoas foram enterradas sem nenhuma dignidade, em covas rasas, não foram identificadas. Os seus familiares foram impedidos de fazer qualquer ritual fúnebre, então, recuperar os nomes dessas pessoas é uma forma de respeito”, considera. “Essas pessoas foram silenciadas durante muito tempo na história, então, é uma questão de justiça recuperar esses nomes”.
SERVIÇO
*A exposição ‘Devassa Governamental da Tragédia do Brigue Palhaço” está aberta ao público até o dia 29 de outubro, no Museu do Estado do Pará, de terça-feira a domingo, de 9h às 17h.
*Além de documentos históricos sobre o Massacre do Brigue Palhaço, a mostra também conta com a tela ‘Brigue Palhaço’, de Romeu Mariz Filho, que faz parte do acervo do Museu de Arte de Belém, da Prefeitura Municipal de Belém.
LANÇAMENTO
No dia do lançamento da exposição, ocorrido na manhã de sexta-feira (20), além dos historiadores Edilza Fontes, Magda Ricci e Leonardo Torii, também participaram do evento a presidenta da Fundação Municipal de Cultura de Belém (Fumbel), Inês Silveira, e a diretora Museu do Estado do Pará, Tamyres Monteiro.