A internet, e principalmente as redes sociais, com todo o seu poder de viralização, têm feito circular uma frase que diz que “nenhuma experiência é individual”, até mesmo por ser uma máxima facilmente encaixável a um amplo número de situações. E uma dessas situações, em pleno 2024, ainda é, lamentavelmente a de assédio, seja moral, seja sexual. Se a pessoa for do gênero feminino então, vale inclusive uma outra máxima: a de que todo mundo conhece alguém que já foi vítima.
A denúncia que derrubou, na semana retrasada o agora ex-titular do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania do Brasil, o advogado, filósofo e professor universitário Silvio Luiz de Almeida, escancarou de forma preocupante uma verdade que não é novidade, mas que ainda não foi nem combatida e nem discutida o suficiente: o assédio é uma instituição onipresente à qual homens, de um modo geral, independente de seus níveis de conhecimento, se sentem autorizados e confortáveis a frequentar.
A psicóloga hospitalar e ativista social em defesa dos Direitos Humanos, Jureuda Guerra, é enfática em relacionar episódios de assédio ao machismo e à misoginia, e lembrar que os dois fatores podem estar em todo o lugar – mesmo aqueles onde parecem incabíveis, justamente o que torna tão difícil a compreensão quando ocorre, por exemplo, entre dois ministros ligados a temas tão sensíveis e voltados justamente à dignidade humana.
“O assédio moral, o assédio sexual é uma prática instituída e banalizada, naturalizada na sociedade. O grande equívoco, falando em relação ao Silvio de Almeida, foi criar expectativas sobre-humanas. Por ele ser um homem do Direito, um homem negro, um homem que se impõe, pelas suas ideias, que escreveu um livro fantástico, faz com que a gente crie ídolos. Isso é a pior coisa, porque faz com que o tire de um lugar humano e faz com que ele se sinta uma pessoa acima do bem e do mal” explica a profissional.
Para ela, o combate a esta realidade passa por iniciativas diversas, que vão desde a criação de canais de denúncia que assegurem o real acolhimento à vítima – e não o descrédito, como acontece com frequência -, ao entendimento de que o assédio precisa ser tratado como um crime grave, capaz de causar danos profundos a quem passa por uma experiência do tipo. “A linha que define o perfil do assediador é muito tênue, porque pode ser aquele perfil opressor, autoritário, que você vê e não gosta, mas também pode ser aquele compreensivo e muito simpático, mas que controla. Porque a misoginia é muito tênue”, acrescenta.
Práticas misóginas e machistas relacionadas ao assédio podem desencadear uma Síndrome de Burnout – estado de exaustão física, emocional e mental devido ao estresse frequente relacionado ao trabalho -, visto que promovem insegurança, comportamentos depressivos, especialmente quando pessoa não conseguir sair daquela situação.
“A gente precisa entender que quem está em sofrimento não está só por condições orgânicas ou hereditárias, ou por possibilidades de doença de base. Pode ter desenvolvido comportamentos depressivos em função de suas relações de trabalho. O comportamento opressor e machista que lança mão do corpo feminino está diretamente relacionada ao Burnout”, afirma Jureuda, lembrando que, menos frequente, há também o assédio vertical, em que a pessoa hierarquicamente abaixo pode cometer contra um ou uma superior, e mais relacionado aos diferentes tipos de racismo e, novamente, à misoginia. “Há casos em que homem não aceita ser chefiado por uma mulher, e dá em cima porque entende que toda mulher está ali para ser cantada”, aponta.
Ao mesmo tempo, a psicóloga explica que a destituição de uma instituição enraizada feito o assédio passa também por promover a escuta desses homens. “Desconstruir masculinidades é também tarefa de campanhas educativas. Os homens às vezes entendem que precisam repetir um padrão, porque sempre foi assim e aí quando chegam a um lugar de poder também devem manter e desenvolver aquele padrão. Precisa ser por meio de mediação, de outros instrumentos, porque eles não vão perceber. Por mais que tenha feito Direito, que seja um filósofo, que tenha visto as relações de poder extremamente adoecedoras e misóginas, quando ascendem, passam a desenvolvê-las também. E isso é um problema gigantesco em nossa sociedade”, analisa.
ESTUDOS
Ao começar a pesquisar sobre Saúde do Homem, o professor doutor do curso de Psicologia da Universidade Federal do Pará (UFPA), Eric Alvarenga acabou chegando ao tema da masculinidade, assunto que o impactou de tal forma a ponto de se tornar um de seus centros de interesse dentro da academia. Hoje ele está à frente de um grupo de estudos sobre o assunto.
“Vivemos numa sociedade machista e patriarcal, na qual boa parte dos homens são criados para serem livres, e as mulheres, submissas. Cria-se uma sensação de que os homens podem tudo, inclusive violar o corpo de mulheres. Sexualmente falando, vários homens parecem viver em um grande filme pornô no qual eles acreditam que podem assediar qualquer pessoa, pois esta vai gostar e querer fazer sexo com eles imediatamente”, critica.
Para o pesquisador é um grande engano acreditar que alguém ser militante dos direitos humanos, ter um discurso contra a violência, contra o machismo, contra o patriarcado, torna alguém imune ao cometimento de violências, como é o assédio. “A filósofa Marilena Chauí diz que a sociedade brasileira é violenta e autoritária. Isso me parece cada vez mais real, ainda mais para pessoas que assumem cargos de liderança, onde você está exercendo um poder sobre várias pessoas. No campo de estudos do assédio moral e sexual, se diz muito que quem exerce o poder costuma abusar dele. Pesquisas e diversas situações do contexto social cada vez mais vão confirmando isso”, relaciona.
Por entender a sociedade atual como “extremamente punitivista”, Eric vê uma possibilidade de mudança desse cenário a partir de uma transformação real, que não se reduz à “cultura do cancelamento”. “Nunca vi isso ‘reabilitar’ ninguém. Tem mais a ver com alimentar a sede de vingança e perversidade das pessoas. O contexto é complexo e exige uma transformação social muito radical, que passa por mudar uma cultura da violência, do machismo, do ódio. Isso envolve defender políticas de equidade como algo inegociável e que atravessem os mais diversos campos da vida, como educação, família, trabalho, economia, cultura, esporte, entre outros. A raiz de vários desses problemas vem deste sistema capitalista que valoriza a competição, o lucro e o poder”, conclui.