Pará

Artistas também usam período para se manifestar

Auto do Círio. Foto: Pedro Guerreiro / Agência Pará
Auto do Círio. Foto: Pedro Guerreiro / Agência Pará
Auto do Círio. Foto: Pedro Guerreiro / Agência Pará

Luiz Octávio Lucas

Durante a quadra nazarena, muito além das 13 procissões marianas, a programação cultural de Belém ferve com inúmeras festas e eventos que passam ao largo da Igreja Católica, mas que aproveitam o período e a movimentação do Círio de Nazaré para agitar a cidade. Se por um lado existe o Arraial de Nazaré, com as devidas bênçãos da Diretoria da Festa, por outro lado existe o Auto do Círio e a Festa da Chiquita, por exemplo.

As duas programações já estão integradas ao lado cultural ciriano, mesmo que não façam parte do calendário de eventos oficial. Seria então um lado profano do Círio? Na opinião do professor da Escola de Teatro e Dança da UFPA, Tarik Coelho, não. O educador atua na coordenação do Auto do Círio, evento que é realizado sempre na sexta-feira que antecede a grande romaria e reúne cerca de 250 artistas, que saem às ruas da Cidade Velha para homenagear a Santa com o que de melhor sabem fazer: arte!

“A questão do profano no Auto, não utilizamos essa palavra, porque ele não profana nada. É um momento de fé e religiosidade dos artistas paraenses com Nossa Senhora de Nazaré. Todos são devotos de Maria, artistas. Não temos relação com a Diretoria da Festa de Nazaré, somos à parte da diretoria, não fazemos parte da festa, mas somos do Círio, somos tombados pelo IPHAN, Estado e município junto com o Cirio”, destaca Tarik que, no entanto, confirma que apesar da homenagem a uma santa da Igreja Católica, nem todos são da mesma religião. “São pessoas de várias outras religiões, todas congregando no Auto do Círio”.

O coordenador explica que o Auto surgiu em 1993, através das professoras Zélia Amador e Margareth Refkalefski. “Elas que realizaram os dois primeiros Autos com os artistas. Eles vêm realizando o espetáculo em forma de cortejo nas ruas da Cidade Velha, promovendo a cultura e a arte através da nossa fé”.

Com o surgimento da pandemia e sua fase mais aguda, as edições de 2020 e 2021 do cortejo foram virtuais. Em 2019, último ano antes da disseminação do coronavírus e que o Auto saiu às ruas, um público de mais de 70 mil pessoas conferiu o espetáculo que voltou a ocorrer na última sexta-feira (7), dessa vez com saída da Casa das Onze Janelas até a Praça Felipe Patroni, no bairro Cidade Velha e com o mesmo sucesso de público dos anos anteriores.

“A cada ano, o Auto foi ganhando corpo, ganhando visibilidade. Sou o quinto coordenador. Diretores de cena já tiveram mais de dez trabalhando e fazendo com o que o cortejo ganhasse a proporção que tem hoje em dia. Já são 28 edições trazendo esse momento de fé e alegria pelos artistas paraenses à Nossa Senhora de Nazaré. A cada ano a gente prepara um espetáculo melhor, que se possa atrair mais público levando essa consciência do patrimônio, fazendo que a participação seja maior a cada ano”, pontua Tarik Coelho.

FESTA DA CHIQUITA
Outra celebração icônica e, por que não dizer, pontuada por polêmicas desde que foi realizada pela primeira vez, há 45 anos, é a Festa da Chiquita, que ocorre sempre no sábado do fim de semana do Círio de Nazaré, logo que a berlinda com a imagem peregrina de Nossa Senhora de Nazaré passa pela avenida Presidente Vargas, na Trasladação. A Chiquita reúne intelectuais, artistas, comunidade LGBTQIA+, turistas e qualquer pessoa, independente da crença, que queira conferir a badalação organizada pelo cantor Eloi Iglesias, que fala sobre a relação da festa com a organização do Círio de Nazaré, ainda que ela não faça parte do programa oficial.

“Essa festa surgiu há 45 anos, época da ditadura militar, então não está muito diferente do que está acontecendo agora. A gente (comunidade LGBTQIA+) lutando para conquistar espaço. Na verdade, já se fazia um trabalho, mas era muito acanhado porque ninguém pensava que os movimentos iam chegar onde chegaram. Veio logo depois do movimento hippie, movimento de contracultura, Belém estava fervendo a parte cultural, a parte de teatro. O Luís Bandeira (sociólogo) era uma pessoa ligada ao teatro, era uma pessoa importante e acabava sendo aquele mecenas da loucura que rolava em Belém. As pessoas curtindo, experimentando. E a casa dele sendo um nicho de artistas e saiu esse bloco de carnaval “As Filhas da Chiquita”, por causa da música do Caetano Veloso”, conta.

Do desfile do bloco para a realização da festa sempre no sábado da Trasladação, foi um pulo. “Porque as pessoas se encontravam no Bar do Parque, muitos eram de teatro e começaram a trabalhar com a coisa da crítica. Então, a Diretoria da Festa tomava conta da cidade e até hoje é assim. Eu sempre digo para eles, ‘vocês estão perdendo a chance de um evento que poderia estar colado na festa’. Ela acaba ficando mais famosa por conta dessa repressão que as pessoas colocam em pleno Século 21, passando por constrangimentos, falando, elas imaginam que acontece muito mais coisa do que acontece”, comenta.

Segundo Eloi, a Festa da Chiquita virou uma espécie de Parada LGBT. “Virou um espetáculo, começou a se fortalecer a Chiquita. Acaba sendo o primeiro evento de parada mesmo, no meio da selva, no meio da floresta. Você entrega o troféu Veado de Ouro, as pessoas vão se divertir. Quem não aparece, morreu. Muita gente já participou”.

Sobre o convívio do sagrado com o profano, Eloi é enfático. “As pessoas aproveitam para dar visibilidade ao profano, mas é o que o turista realmente quer ver. Quem vem pro turismo religioso é paraense, o forasteiro vem para esse lado profano, querem ver o Auto, o Arrastão do Pavulagem, a procissão das águas, a rua, os eventos que estão fora do Círio, coisas que além de tudo trazem muito dinheiro pro Estado. A Gaby Amarantos acabou de me falar que está vindo um monte de gente aqui famosa conhecer a festa.”

Sobre as tentativas até de mudar o local de realização da Chiquita para outro lugar, longe da procissão, e de não fazer parte da programação oficial, o coordenador “da resistência” faz uma reflexão. “Tem que se manter assim, porque isso que deixa vivo. Eles precisam ter o contraponto”, compara aos risos. “Gostaria que as coisas convivessem, mas faz parte disso. Nós somos amigos (Eloi e os diretores da Festa de Nazaré), rimos. Questiono muita coisa com eles”, lembra.

Reconhecida como patrimônio cultural pelo Iphan, a Chiquita tem “carta de alforria”, brinca Eloi, para seguir nas imediações da Trasladação. “Esse ano iríamos fazer lá no Bar do Parque, mas por causa das eleições o prefeito me disse que seria muito complicado pelo momento em que vivemos. Nos últimos anos, por conta da reforma do Bar do Parque, descemos para a avenida Assis de Vasconcelos, na Rua da Paz. De qualquer maneira, é um lugar confortável, perdemos até de ver a Santa passar, mas é uma homenagem à Santa. Por outro lado, estava muito apertado, a gente aceitou a proposta, a ideia era voltar, mas vamos ficar lá, porque não queremos bater de frente com a igreja”, avisa.
Questionado sobre se a Santinha recebe a homenagem da Chiquita com carinho, Eloi é categórico. “Ela vai pra lá porque são os amigos dela que estão lá, os que bordam os mantos, colocam a coroa, decoram a berlinda”, resume.