Cintia Magno
O smartphone fixado no painel do carro indicando o trajeto a ser feito pelo motorista se tornou cena comum ao se direcionar o olhar para os veículos que circulam ao lado, no trânsito. Apesar de tão corriqueiros, até algum tempo atrás, em meados de 2014, os aplicativos de mobilidade eram uma novidade que ainda dava início às operações no Brasil. Em quase 10 anos, a tecnologia causou mudanças significativas nas relações de trabalho, nas formas de se locomover e consumir e, naturalmente, no trânsito.
Desde que as maiores plataformas de mobilidade urbana começaram a atuar no país, a taxa de motorização (veículos por habitantes) registrada na Região Metropolitana de Belém (RMB) aumentou mais de 26%, passando de 237 veículos por mil habitantes em 2014 para 299 veículos por mil habitantes em 2021, considerando o levantamento realizado pelo Instituto de Políticas de Transporte e Desenvolvimento (ITDP) na plataforma Mobilidados, que utilizou dados do Denatran e do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Somente no primeiro ano de atuação dos aplicativos de mobilidade, o aumento na taxa de motorização na RMB foi de mais de 4%, passando de 237 carros por mil habitantes em 2014, para 248 em 2015.
Ainda que não se tenham estudos específicos que avaliem o impacto dos aplicativos de mobilidade na frota de veículos e no trânsito das cidades, outros indicadores registram a perda de preferência dos passageiros pelo transporte público e, ainda, o crescimento evidente que o segmento abarcado pelos aplicativos de mobilidade vem apresentando no país.
De acordo com o boletim “Os carros e as cidades em colapso”, da série Mobilidados em Foco, desenvolvido pelo ITDP e divulgado em setembro de 2019, em menos de duas décadas, a frota de veículos no Brasil aumentou 153%, enquanto a população cresceu apenas 22%. “Nas regiões metropolitanas de Curitiba, Belém, Belo Horizonte, Fortaleza, Recife, Rio de Janeiro, Salvador, São Paulo e no Distrito Federal, entre 2007 e 2017, a média das taxas de motorização cresceu 67%”.
Tudo isso ocorre diante de um cenário em que, segundo destaca o relatório, vem se acompanhando no mundo e no Brasil “a chegada e o robusto crescimento da oferta de serviços de transporte por carros via aplicativos” e o “crescimento dos serviços ligados à entrega por aplicativos”. Considerando as mudanças no cenário da mobilidade, o relatório destaca que empresas acabam se apresentando como uma opção de mobilidade em áreas pouco cobertas por transporte frequente, mas que “na realidade, cidades de todo o mundo ainda estão tentando entender o impacto desses serviços sobre o transporte público e o trânsito”.
O que já se sabe, hoje, é que as pessoas estão gradativamente deixando de usar o transporte público como solução de mobilidade. De acordo com o relatório do ITDP, de abril de 2018 a abril de 2019, foram registrados 12,5 milhões de passageiros a menos no transporte público no Brasil. O número de trabalhadores que atuam profissionalmente por essas plataformas deu um salto no Brasil, ampliando o que os especialistas chamam de Gig Economy, termo usado para caracterizar as relações de trabalho em que empresas contratam mão de obra, sobretudo por meio de aplicativos, para realização de serviços esporádicos e sem vínculo empregatício.
Em 2021, um levantamento inédito realizado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), a partir de dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), revelou que aproximadamente 1,4 milhão de trabalhadores em atividade no setor de transporte de passageiros e de mercadorias no Brasil estão inseridos na Gig economy. De acordo com o levantamento, o número de brasileiros que trabalham para aplicativos de entrega de mercadorias no Brasil cresceu 979,8% no período de 2016 a 2021.
No primeiro trimestre de 2016, o número de pessoas ocupadas no transporte de passageiros na Gig economy, ou seja, por meio de plataformas e aplicativos, era de cerca de 840 mil. Passados cinco anos, nos dois primeiros trimestres de 2021 o número já chegava a 1,1 milhão de pessoas, representando um aumento de 37% em comparação com o início da série.
Há três anos o jovem Leonardo Silva, 28 anos, é um desses trabalhadores. Depois de ter iniciado no ramo transportando passageiros pelos diferentes bairros da Região Metropolitana de Belém de carro, há menos de um ano ele decidiu migrar para a motocicleta, que passou a ser oferecida pelos aplicativos como mais uma opção de transporte de passageiros no início deste ano. “Dependendo do dia, eu faço mais de 20 corridas por dia. Eu saio de casa 7h e trabalho até 19h”, conta, ao explicar por que optou pela moto, ao invés do carro. “Na moto a gente gasta menos combustível, então, acaba sendo mais vantagem. Essa moto é minha, mas hoje em dia já tem gente abrindo empresa especializada em alugar moto para o pessoal trabalhar em aplicativo”.
Mudança gera consequências no dia a dia
Ainda que o maior conforto e agilidade proporcionada pelos carros por aplicativo sejam um atrativo justificável para garantir a preferência da população, a substituição do uso do transporte coletivo pelo particular pode gerar consequências para a mobilidade urbana.
Professora da Universidade Federal do Pará (UFPA), a doutora em Engenharia de Transportes Maisa Tobias considera que a troca dos veículos coletivos pelos individuais aumenta a mobilidade das pessoas em termos de oferta de transporte individual, porém, do ponto de vista coletivo age de maneira negativa em congestionamentos e aumento de tempo de viagem per capita na mobilidade. “Ou seja, traz benefícios por um lado e custos por outros”, considera. “O uso acelerado do transporte individual é um sinal de que o transporte coletivo não atende a demanda de transporte”.
Nesse sentido, a professora considera que carros de aplicativos, enquanto transporte individual, impactam no aumento da frota de automóveis no trânsito, contribuindo com mais congestionamento, e na evasão do transporte coletivo. Uma demanda que precisa ser avaliada quando se pretende promover melhorias na mobilidade das grandes cidades. “Em qualquer cidade grande no mundo o transporte coletivo é a saída sustentável para uma cidade mais segura e com melhor mobilidade”, avalia. “O aplicativo cresce em oferta ao cidadão, dando mais opções de transporte aos cidadãos, mas, por outro lado, aumenta a frota veicular circulante, o que contribui de maneira negativa na mobilidade. Porém, não só o carro de aplicativo, mas todos os veículos motorizados individuais”.
EM NÚMEROS
VEÍCULOS
Frota de veículos em março de 2023
BRASIL
Total de veículos – 115.996.093
Automóvel – 60.725.223
Micro-ônibus – 437.114
Motocicleta – 26.017.283
Motoneta – 5.453.230
Ônibus – 694.748
52,35% da frota de veículos do Brasil é composta por automóveis, 22,43% são de motocicletas e apenas 0,60% de ônibus.
PARÁ
Total de veículos – 2.511.664
Automóvel – 722.781
Micro-ônibus – 7.568
Motocicleta – 1.074.499
Motoneta – 257.320
Ônibus – 21.760
BELÉM
Total de veículos – 516.148
Automóvel – 246.180
Micro-ônibus – 2.243
Motocicleta – 149.821
Motoneta – 28.413
Ônibus – 3.995
Fonte: Ministério dos Transportes, SENATRAN – Secretaria Nacional de Trânsito, RENAVAM-Registro Nacional de Veículos Automotores. Dados referentes a Março de 2023.
Frota de veículos em 2014
BRASIL
Total de veículos – 86.700.490
Automóvel – 47.946.665
Micro-ônibus – 361.501
Motocicleta – 19.242.916
Motoneta – 3.599.581
Ônibus – 574.125
PARÁ
Total de veículos – 1.585.786
Automóvel – 492.271
Micro-ônibus – 6.200
Motocicleta – 671.043
Motoneta – 148.153
Ônibus – 15.863
BELÉM
Total de veículos – 396.759
Automóvel – 212.846
Micro-ônibus – 1.911
Motocicleta – 96.727
Motoneta – 13.809
Ônibus – 3.671
Fonte: Ministério das Cidades, Departamento Nacional de Trânsito – DENATRAN – 2014.
AUMENTO
De acordo com os dados oficiais disponibilizados pela Secretaria Nacional de Trânsito (SENATRAN), do Ministério do Transportes, o número de motocicletas registradas em Belém aumentou em mais de 54%, passando de 96.727 em 2014, para 149.821 em março de 2023. No mesmo período, o número de automóveis passou de 212.846 em 2014, para 246.180 em março de 2023, um aumento de mais de 15%. Ao mesmo tempo, o número de ônibus e micro-ônibus, somados, teve um aumento de 11% no mesmo período.