DENÚNCIA

Ananindeua direciona pacientes do SUS para hospital que era do prefeito

Entenda a controvérsia do direcionamento de pacientes do SUS em Ananindeua para o Hospital Santa Maria de Ananindeua, em vez do Hospital Anita Gerosa.

Em apenas 4 anos, a Prefeitura de Ananindeua pagou quase R$ 92,5 milhões ao Hospital Santa Maria, que pertence ou pertenceu ao prefeito da cidade, Daniel Barbosa Santos
Em apenas 4 anos, a Prefeitura de Ananindeua pagou quase R$ 92,5 milhões ao Hospital Santa Maria, que pertence ou pertenceu ao prefeito da cidade, Daniel Barbosa Santos. Foto celso Rodrigues/ Diário do Pará.

Ananindeua - A Prefeitura de Ananindeua estaria direcionando pacientes do Sistema Único de Saúde (SUS), que deveriam ser atendidos pelo Hospital Anita Gerosa, para o Hospital Santa Maria de Ananindeua, que pertence ou pertenceu ao prefeito Daniel Santos. O Anita Gerosa parou de atender esses pacientes no último dia 26, devido a uma dívida de R$ 3 milhões da Prefeitura, que só lhe repassava os pagamentos do SUS com até 6 meses de atraso.

Os sucessivos calotes inviabilizaram o atendimento do hospital, que era filantrópico (sem fins lucrativos) e possuía a única maternidade 24 Horas da cidade. O direcionamento para o Santa Maria estaria ocorrendo através de uma triangulação: as pacientes que precisam de cirurgias são encaminhadas para o Pronto Socorro de Ananindeua, que então as encaminha ao hospital que foi ou é do prefeito.

O esquema seria semelhante a uma das fraudes que resultaram no desvio de mais de R$ 261 milhões do Iasep (o instituto de assistência dos servidores estaduais) para o Santa Maria. Segundo o Ministério Público do Pará (MPPA), as fraudes incluiam superfaturamentos de até 1000% nos preços dos serviços do hospital. Também incluiam o encaminhamento (direcionamento) de servidores públicos, em grande quantidade, para atendimento pelo Santa Maria.

A quadrilha foi desbaratada, no ano passado, pelo Gaeco, o grupo de combate às organizações criminosas do MPPA. Daniel Santos é investigado por suposta participação nesses crimes. No período em que ocorreram, entre 2019 e meados de 2023, ele foi presidente da Assembleia Legislativa do Pará (Alepa) e prefeito de Ananindeua, em primeiro mandato. Nos registros da Junta Comercial do Pará (Jucepa), ele foi dono do Santa Maria entre 2014 e maio de 2022. Mas a suspeita, no MPPA, é que continue como “sócio oculto” do hospital.

Depoimentos nas redes sociais e documentos obtidos pelo DIÁRIO mostram que as pacientes que eram da maternidade do Anita Gerosa são mandadas para o Pronto Socorro Municipal. E, quando necessitam de partos cirúrgicos, laqueaduras e outros procedimentos mais caros para os cofres públicos, acabam encaminhadas ao Santa Maria.

O suposto direcionamento seria ainda mais simples do que no Iasep. Como Ananindeua possui “gestão plena” do sistema de Saúde, é a Prefeitura quem contrata os hospitais para os serviços necessários à população: exames e cirurgias, por exemplo. E é ela, também, quem fiscaliza se esses serviços foram realmente prestados e os valores devidos. O pagamento é realizado com o dinheiro do SUS, que cai diretamente na conta do Fundo Municipal de Saúde (FMS). Assim, se o prefeito ou o secretário de Saúde possui ligação a algum hospital, é fácil direcionar atendimentos para ele, pagar por serviços não-realizados e até eliminar a concorrência.

Prefeito deu calotes em outros hospitais

O Anita Gerosa é o terceiro hospital a enfrentar problemas financeiros na administração de Daniel Santos, devido a sucessivos calotes da Prefeitura. Em 2021, o Camilo Salgado, no bairro do Coqueiro, foi desapropriado pelo prefeito. E os seus proprietários afirmam que não conseguiram reabrir o hospital em outro lugar, devido aos atrasos dos pagamentos e a um calote milionário. A indenização pela desapropriação, que era de R$ 14 milhões, deveria ter sido totalmente paga em 2022.

Mas as parcelas, que eram mensais, chegaram a ser quitadas com até 6 meses de atraso. Assim, em dezembro de 2023, quando suspendeu os pagamentos, a Prefeitura ainda devia R$ 4 milhões aos donos do hospital. Com isso, eles entraram na Justiça, em março do ano passado, para tentar receber esse dinheiro.

Entre abril e maio do ano passado, outros dois hospitais da cidade também informaram que estavam sendo vítimas de constantes atrasos de pagamentos: o Hospital de Clínicas de Ananindeua (HCA) e o Anita Gerosa. Na época, o HCA chegou a suspender o atendimento aos pacientes do SUS, porque a dívida da Prefeitura já atingia cerca de R$ 7 milhões.

Metade dela por serviços realizados em 2021, o primeiro ano da administração de Daniel Santos, quando os atrasos de pagamento e as dificuldades do hospital teriam começado, disse um de seus diretores. Segundo ele, ainda em janeiro de 2021, alegando “dificuldades financeiras”, a Prefeitura cortou 25% dos recursos destinados ao HCA. E isso apesar de ele ser o hospital que mais realiza atendimentos para o SUS, naquela cidade, afirmou o diretor.

Outro que também já se encontrava em situação aflitiva era o Anita Gerosa, hospital “Amigo da Criança”, que recebia incentivos da “Rede Cegonha” do SUS, para atendimento obstétrico e neonatal. Em abril do ano passado, a Prefeitura devia ao Anita Gerosa quase R$ 3,7 milhões, por serviços realizados em 2023 e 2024. Segundo o portal municipal da Transparência, em janeiro e fevereiro de 2024, a Prefeitura não pagou nada ao hospital.

E só de março a maio é que pagou os serviços realizados em setembro, outubro, novembro e dezembro de 2023. Apenas depois disso, já no mês de junho, é que começou a pagar os serviços de 2024, quitando o mês de janeiro. O último mês pago foi julho, em 6 de dezembro. E, em 30 de dezembro, anulou R$ 1,346 milhões, dos pagamentos devidos pelos meses de agosto e setembro. Dias antes, o Anita Gerosa denunciara à imprensa os atrasos de pagamento e ameaçara suspender o atendimento aos pacientes do SUS.

O Anita Gerosa era a única maternidade de Ananindeua com unidades de cuidados intensivos (UCIs) específicas para mamães e bebês. Possuía mais de 60 anos. E a sua situação aflitiva provocou comoção nas redes sociais. Mesmo assim, no último 26 de janeiro, ela fechou as portas. Em nota, a Sociedade Beneficente São Camilo (SBSC), mantenedora do Anita Gerosa, disse que as atividades hospitalares estavam sendo encerradas não apenas para pacientes do SUS, mas também para convênios e particulares. Só o que permaneceu foram consultas e exames, particulares e conveniadas.

Antigo (ou atual) hospital do Prefeito recebeu R$ 21,2 milhões em 2024

A SBSC disse, também, que tomou essa decisão após “várias tentativas” de receber os valores devidos pela Prefeitura, que chegariam hoje a R$ 3 milhões, segundo ela. Além disso, vinha custeando sozinha, desde janeiro de 2023, um déficit mensal de R$ 800 mil, daquele hospital. A nota não diz, mas fontes informaram que o problema é que o hospital não obteve financiamento da Prefeitura, para cobrir esse déficit: todo o dinheiro que recebeu sempre foi apenas do SUS. A SBSC informou, ainda, que investiu R$ 19,4 milhões no Anita Gerosa, entre 2023 e 2024, para a manutenção do atendimento. “Para além dos pacientes que ficam sem atendimento também há os colaboradores e médicos que perdem seus empregos. São mais de 150 pessoas de um total de 235 colaboradores”, informou.

Em seu Instagram, Daniel Santos disse que a Prefeitura “vai absorver” toda demanda do Anita Gerosa. Segundo ele, o pronto socorro municipal contaria com “equipe obstétrica” 24 horas por dia, já a partir do último dia 27. A equipe, disse ele, realizará “os partos que forem necessários” e os demais procedimentos médicos serão encaminhados às demais unidades de saúde municipais.

Também garantiu que “nada ficou em aberto”, ou seja, que não deve mais nada ao hospital. No entanto, essa afirmação é desmentida pelo portal da Transparência da própria Prefeitura, segundo o qual a Prefeitura deve pelo menos 5 meses de serviços do Anita Gerosa: agosto, setembro, outubro, novembro e dezembro, ou cerca de R$ 3 milhões. Mas o prefeito sabe que a população não acessará o portal. Por isso, nem se importa de espalhar fake news (inverdades).

Só no ano passado, diz o portal da Transparência, a Prefeitura repassou ao Hospital Santa Maria, que foi ou é do prefeito, mais de R$ 21,2 milhões. O Anita Gerosa era a única maternidade de Ananindeua que atendia gestação de alto risco; não há esse serviço no Santa Maria. Além de Ananindeua, cidade com 478.778 habitantes, a segunda mais populosa do Pará, o Anita Gerosa também atendia outros municípios da Região Metropolitana. A estimativa é que realizava 200 partos por mês. Uma bela turbinada financeira para os cofres do hospital do prefeito.

Por Ana Célia Pinheiro