Pará

Ações da Uepa fortalecem a educação indígena no Pará

Uma cena memorável marca o final da solenidade de outorga de grau do curso de Licenciatura Intercultural Indígena da Universidade do Estado do Pará (Uepa)
Uma cena memorável marca o final da solenidade de outorga de grau do curso de Licenciatura Intercultural Indígena da Universidade do Estado do Pará (Uepa)

Uma cena memorável marca o final da solenidade de outorga de grau do curso de Licenciatura Intercultural Indígena da Universidade do Estado do Pará (Uepa): o (a) indígena concluinte retira o seu cocar, que possui grande simbologia para as comunidades indígenas, e recebe o capelo de formatura.

Ao longo da cerimônia, os dois itens são usados intercaladamente. Da mesma forma, o(a) reitor(a) da instituição retira o capelo branco – que compõe as vestes talares utilizadas em cerimônias de outorga de grau -, e recebe das mãos dos indígenas o cocar, passando a utilizá-lo na ocasião.

O momento representa a interculturalidade, a aliança entre os conhecimentos acadêmico e tradicional. Dessa forma, os saberes indígenas são tidos como sistemas que devem ser considerados no processo de ensino e aprendizagem, assim como os sistemas utilizados pela ciência ocidental. Nos recém-completados 30 anos de existência, a Uepa cumpre seu papel social, ao reconhecer a diversidade cultural dos povos indígenas, seus modos próprios de organização linguística, política e cultural, e promove, direta e indiretamente, o fortalecimento e a valorização da cultura desses povos.

O Comitê de Ética Permanente (CEP) é outra importante iniciativa promovida pelo Nufi. Implantado em 2017, ele avalia os projetos que incluem os povos indígenas e garante os aspectos éticos das pesquisas

As ações educacionais da Uepa voltadas aos indígenas começaram a ser desenvolvidas em 2007, ano em que foi realizada a Semana dos Povos Indígenas no Pará. Na ocasião, foi elaborada a Carta dos Povos Indígenas e entregue ao Governo do Estado. O documento contemplava proposições relativas aos problemas vivenciados pelos povos indígenas paraenses, em setores prioritários como educação, saúde, infraestrutura, valorização do patrimônio cultural, sustentabilidade econômica, geração de renda, proteção e gestão territorial.

Na área da educação, a Uepa atendeu a demanda dos povos indígenas para acesso ao ensino superior. Em 2009, foi constituída uma comissão para planejar as ações necessárias e, em 2011, foram criados o curso de graduação em Licenciatura Intercultural Indígena e o Núcleo de Formação Indígena (Nufi). “Os indígenas solicitaram que dentro da universidade houvesse um espaço que pudesse fazer a mediação entre a universidade, as comunidades indígenas e o movimento indígena como um todo”, conta a professora Joelma Alencar, coordenadora do Nufi.

O Núcleo de Formação Indígena é vinculado à Pró-Reitoria de Graduação (Prograd) da Uepa e se constitui como um instrumento de articulação e execução das ações afirmativas concernentes à formação inicial e continuada dos povos indígenas. O Núcleo é um espaço interinstitucional, que visa garantir aos povos indígenas formação superior, realização de pesquisas, atividades de extensão e formação continuada, de acordo com as suas necessidades e realidades.

As primeiras turmas da graduação em Licenciatura Intercultural Indígena foram ofertadas em 2012, para os povos Gavião, Tembé, da terra indígena Alto Rio Guamá, e Surui/Aikewara. Até o momento, onze turmas do curso já foram formadas e três estão em andamento: Xikrin do Kateté, em Parauapebas, pelo Programa Forma Pará; Munduruku, em Jacareacanga, também pelo Forma Pará; e Território Etnoeducacional Tapajós Arapiuns, em Santarém, por meio do Programa Nacional de Formação de Professores da Educação Básica (Parfor).

Além da graduação, a universidade também oferta os cursos de especialização Ensino na Educação Escolar Indígena e de mestrado profissional em Educação Escolar Indígena, o que torna a Uepa pioneira no ensino indígena.

“A Uepa é a única instituição do Pará que trabalha com licenciatura voltada para indígenas. Na educação escolar indígena como modalidade, nós somos a primeira e estamos sendo a única instituição que tem curso específico. Temos o único mestrado do Brasil que oferta um curso para indígenas, pois os outros cursos de mestrado têm linhas de pesquisa que trabalham etnicidade e cultura, enquanto que todo o nosso projeto pedagógico é pensado especificamente para atender os povos indígenas, então esse também é um diferencial”, explica Joelma Alencar.

Formação

Um total de 259 indígenas já se formaram na graduação de Licenciatura Intercultural Indígena e 175 estão matriculados no curso atualmente. Há 80 alunos cursando a especialização Ensino na Educação Escolar Indígena e 57 o mestrado.

A indígena Matania Surui é uma das egressas da primeira turma de Licenciatura Intercultural Indígena da Uepa. Logo após a graduação, ela iniciou o curso de especialização em Educação Escolar Indígena e, em seguida, o mestrado em Educação Escolar Indígena. Atualmente, ministra a disciplina de Matemática, para alunos do 6º ao 9º ano da Escola Sawarapy Surui, na aldeia Sororó, zona rural do município de Brejo Grande do Araguaia; e na Escola Akamassyron, situada na aldeia de mesmo nome, na zona rural de São Domingos do Araguaia, na qual leciona disciplinas gerais para turmas da Educação Infantil ao 5º ano.

Matania define a Uepa como parceira dos indígenas e diz que se sente bem na instituição. “É como se eu estivesse em casa”, afirma. O desejo de resguardar os conhecimentos dos antepassados indígenas motivou Matania a ingressar na universidade. “Nós, povos indígenas, somos conhecidos como ‘povos sem escrita’. Os nossos antepassados sempre repassaram os saberes indígenas para as gerações futuras através da oralidade, então, cabe a nós, acadêmicos indígenas, fortalecer todos esses conhecimentos na escrita”, destaca.

Conforme a docente, a Uepa é uma instituição de suma importância para os povos indígenas, pois expande a educação escolar indígena e contribui para o território como um todo, com o fortalecimento da identidade cultural dos povos.

“Vejo que os cursos têm se expandido e isso é muito importante, pois a Uepa tem profissionais capacitados para atender os acadêmicos indígenas. E o diferencial da universidade é ofertar o curso dentro dos próprios territórios. Eu fico muito feliz quando vejo que há vários povos indígenas ingressando na universidade, porque essa é a forma de nos defendermos, nos fortalecermos enquanto indígenas, e nos protegermos também, porque o conhecimento acadêmico nos torna pessoas potentes”.

Nos últimos anos, houve um crescimento expressivo da presença indígena no ensino superior. De acordo com a Secretaria de Modalidades Especializadas de Educação (Semesp), entidade que representa as instituições de ensino superior no Brasil, entre 2011 e 2021, a quantidade de matrículas de alunos autodeclarados indígenas no ensino superior aumentou 374%. Na visão de Matania, o movimento de entrada na universidade potencializa o movimento indígena.

“É muito importante os indígenas estarem dentro da universidade, pois fortalece os povos indígenas e também porque precisamos de médicos, enfermeiros, administradores, advogados, professores, de vários profissionais para assumirem cargos dentro do nosso próprio território”, ressalta.

Ações

Entre as ações promovidas pela Universidade do Estado do Pará está a formação continuada de professores indígenas, por meio da participação na iniciativa Saberes Indígenas na Escola, do Ministério da Educação (MEC), que oferece aos professores formação bilíngue ou multilíngue em letramento e numeramento em línguas indígenas e em português, além de conhecimentos e artes verbais. A Uepa integra o programa desde 2013 e já formou mais de 500 professores indígenas por meio da ação.

“O Saberes Indígenas trabalha a formação continuada com metodologias de ensino e elaboração de materiais didáticos específicos para a escola indígena. Todos os nossos professores formadores são selecionados a partir da vivência e expertise para fazer a formação continuada. Então, o foco é trabalhar todos os conhecimentos necessários para se garantir esses saberes indígenas na escola, principalmente nos anos iniciais”, destaca a gestora do Nufi, que é docente da Uepa há 28 anos e coordena o Núcleo desde a sua criação.

Dentro da política indígena da universidade, faz parte o Programa Institucional de Iniciação Científica nas Ações Afirmativas (Pibic-AF), voltado para instituições públicas, participantes do Pibic, e que tenham implementado ações afirmativas para o ingresso no Ensino Superior.

“Apesar de as ações afirmativas não terem sido criadas especificamente para os povos indígenas, consideramos importantes para fortalecer toda a política indígena, tanto que a mais recente foi a criação das cotas étnico-raciais na nossa universidade”, destaca Joelma.

As cotas étnico-raciais foram implantadas, neste ano, no processo de seleção de novos alunos. Foram destinadas 20% das vagas para os candidatos que, no ato da inscrição, se declararam negros ou indígenas e que cursaram ou estavam concluindo integralmente o Ensino Médio em cursos regulares ou na modalidade Educação de Jovens e Adultos (EJA), em instituições públicas de ensino.

O Comitê de Ética Permanente (CEP) é outra importante iniciativa promovida pelo Nufi. Implantado em 2017, ele avalia os projetos que incluem os povos indígenas e garante os aspectos éticos das pesquisas.

A relação de confiança estabelecida entre a universidade e os povos indígenas é essencial para a continuidade das ações desenvolvidas

“É um comitê diferenciado, no qual temos a participação de indígenas como membros, pois sempre tentamos garantir a possibilidade do indígena participar, seja como professor, seja como membro de comissão, para que possa exercer o seu direito e para que as políticas sejam elaboradas e efetivadas”, explica a coordenadora do Núcleo.

De acordo com a professora Joelma, o Nufi tem a perspectiva de desenvolver ações junto à recém-criada Secretaria de Estado dos Povos Indígenas (Sepi), liderada por Puyr Tembé, “indígena que também tem a vontade de continuar a desenvolver e ampliar as ações da Uepa via Nufi”. Conforme Joelma Alencar, Puyr foi uma das principais articuladoras (junto com os líderes indígenas Piná Tembé e Zeca Gavião), para que fosse ofertado o primeiro curso de Licenciatura Intercultural Indígena na universidade, pois “colaborou para que a Uepa fizesse a articulação nas comunidades para a implementação do curso. Ela foi importantíssima, porque deu todo o suporte necessário”.

A relação de confiança estabelecida entre a universidade e os povos indígenas é essencial para a continuidade das ações desenvolvidas.

“Um dos princípios que temos é o respeito e isso é muito importante, pois os indígenas confiam no nosso trabalho e sabem que não faremos nada, no sentido de explorar, de fazer projetos em prol somente dos nossos interesses, visando somente o capital. Conseguimos estabelecer uma relação de confiança, e talvez devido a isso há o reconhecimento de toda a equipe do Nufi”, destaca Joelma Alencar.

Atualmente, o corpo docente do Departamento de Educação Escolar Indígena (DEEI), vinculado ao Nufi, é composto por 10 professores. Todos são preparados para atuar junto aos povos indígenas, ministrando aulas em seus próprios territórios, fator que se constitui como um diferencial do ensino da Uepa, se comparado às demais universidades.

“Saímos da zona de conforto e vamos até as aldeias. Passamos dois, três dias viajando em estrada de chão, de barco, para poder chegar nas aldeias e desenvolver o nosso trabalho”, relata a gestora do Nufi.

A professora Joelma afirma que, a partir do momento em que a Uepa chega no território indígena, “há uma imersão do próprio indigena, de se reconhecer e de ver o quanto a universidade valoriza aquele conhecimento, aquele saber, o que vai impactar também positivamente na qualidade da educação básica”. Da mesma forma, os docentes que ministram aulas para as comunidades indígenas são “educados para as diferenças, para um novo universo, e conseguem perceber que não existe uma única ciência, e sim outras ciências e outras formas de elaborar o conhecimento, como o saber indígena”.

Experiência

Atualmente, o corpo docente do Departamento de Educação Escolar Indígena (DEEI), vinculado ao Nufi, é composto por 10 professores

A coordenadora do curso de Licenciatura Intercultural Indígena, Aline da Silva Lima, foi uma das docentes que teve sua trajetória profissional enriquecida a partir da experiência com os alunos indígenas. Aline leciona Matemática na área de Práticas Socioculturais para o Ensino de Matemática, com enfoque no letramento e na alfabetização matemática, a partir do contexto cultural indígena, como a pintura e o artesanato, considerando os fazeres e saberes matemáticos dos povos.

“Como o curso está dentro do contexto dos nossos acadêmicos, o professor se desloca para a aldeia e nesse deslocamento a gente tem a experiência não só de formar os acadêmicos, mas também de contribuir para a sua própria formação. Um novo olhar é adquirido e acabamos trabalhando de um outro modo, que faz referência ao contexto do próprio aluno. Na licenciatura indígena, a academia está dentro da aldeia, e esse contexto cultural é enriquecedor, para o professor e para a formação dos alunos. No curso, a evasão escolar é praticamente zero, pois os acadêmicos não precisam se deslocar de suas aldeias para o campus”, relata Aline Lima, que assumiu a coordenação do curso no final de 2021.

A professora afirma que a presença da Uepa nas aldeias impacta positivamente todo o território.

“Quando a Uepa chega, percebemos que os alunos ganham asas e buscam transformar os conhecimentos em melhorias para a comunidade. Tanto que muitos não ficam somente na graduação, mas fazem também especialização, mestrado e se tornam colaboradores da própria universidade”. A partilha de saberes muda a vida de todos os agentes sociais, inclusive de Aline, que ingressou na Uepa como professora especialista e hoje tem o título de doutorado, conquistado a partir de pesquisa desenvolvida junto aos indígenas.

Após os 30 anos trilhados pela Uepa, Aline Lima deseja que os próximos passos da universidade continuem a ser de compromisso com as causas indígenas. “Que a universidade possa contribuir cada vez mais, que abra caminhos e construa conhecimento pautado nas necessidades dos povos indígenas, que lutam por território, educação, cultura, e isso tudo faz parte do processo educacional”, conclui.