REPORTAGEM ESPECIAL

Ação de cidadania valoriza quilombolas do Abacatal

Saiba mais sobre o papel do Tribunal de Contas do Estado do Pará na fiscalização da gestão dos recursos públicos estaduais.

Comunidade Quilombo - Abacatal - Ananindeua. Foto: Mauro Ângelo/ Diário do Pará.
Comunidade Quilombo - Abacatal - Ananindeua. Foto: Mauro Ângelo/ Diário do Pará.

Exercer o controle externo da gestão dos recursos públicos estaduais em benefício da sociedade é a missão principal do Tribunal de Contas do Estado do Pará (TCE-PA). Para isso, é fundamental que a sociedade compreenda que o órgão fiscaliza a arrecadação e a aplicação dos recursos públicos obtidos por meio de tributos estaduais, como o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS), o Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores (IPVA) e o Imposto de Transmissão Causa Mortis e Doação (ITCMD).

A supervisão da sociedade sobre as ações do governo é definida por meio do controle social, conceito que pode ser entendido como a participação do cidadão na gestão pública, que se dá por meio de fiscalização, monitoramento e controle das ações da administração pública. Podemos definir os controladores sociais como os membros de conselhos, estudantes, demais cidadãos e a sociedade civil organizada.

Dessa forma, o TCE-PA desenvolve projetos educacionais para a disseminação da cultura participativa e fiscalizatória dos cidadãos, com o objetivo de construir uma sociedade mais justa e democrática, pautada pela aplicação dos recursos públicos, feita com o apoio do povo. Como forma de estimular o envolvimento da sociedade no controle social, o órgão criou, em 2011, o Programa TCE Cidadão, que é formado por três projetos: o TCE Cidadão nas Escolas, o TCE Cidadão Universitário e o TCE Cidadão Comunidade.

Após anos de existência do programa, os números revelam-se bastante expressivos. De 2013 a 2023, o Programa TCE Cidadão já envolveu 55.541 pessoas, sendo 25.894 alunos em 494 escolas distribuídas pelas 12 regiões de integração do Pará, 3.936 estudantes de 26 instituições de ensino superior e 25.711 moradores de 31 comunidades do Estado.

TCE na Comunidade
De modo semelhante aos demais projetos do programa, o TCE Cidadão Comunidade apresenta o funcionamento da máquina pública com a arrecadação de impostos pagos pelo contribuinte, que pode supervisionar a aplicação de recursos, pois esse direito é garantido constitucionalmente, com o apoio do TCE-PA, que intervém também como fiscalizador institucional das verbas públicas.

O projeto TCE Cidadão Comunidade visa ainda apresentar às comunidades o papel delas de acompanhar a atuação da gestão pública e estimular o conhecimento acerca do controle social e as ferramentas disponíveis na sociedade para realizá-lo. Nesta perspectiva, as comunidades atendidas recebem subsídios para contribuir no fortalecimento da cultura da política participativa.

A cada visita do projeto, são difundidas informações sobre o direito de fiscalização da gestão dos recursos públicos pela população, a atuação institucional do TCE-PA como controlador e a possível parceria entre o Tribunal e a comunidade na busca pelo melhor investimento das verbas do erário em favor do interesse público.

Quilombo Abacatal
Localizada no bairro do Aurá, em Ananindeua, às margens do Igarapé Uriboquinha, um braço do Rio Guamá, a Comunidade Quilombola do Abacatal tem suas raízes históricas entrelaçadas com o território desde 1710, totalizando 314 anos de luta pelos direitos à terra e pela valorização da comunidade, garantidos constitucionalmente pelo artigo 68 da Constituição Federal, que reconhece a propriedade definitiva das terras aos povos quilombolas que as ocupam e determina que o Estado emita os títulos respectivos.

A ocupação no local foi marcada inicialmente pela instalação de um engenho de cana-de-açúcar do português Conde Antônio Koma de Melo, que deixou a área como herança para três filhas que teve com a escrava Olímpia. O local foi então ocupado por descendentes de escravos no século XVIII e é até hoje um símbolo de resistência, por mostrar a exploração de escravos com a construção do “Caminho das Pedras”, onde a comunidade deu o primeiro passo de existência às margens do Igarapé Uriboquinha.

A estrutura tem aproximadamente 500 metros de extensão e meio metro de largura e foi construída para o acesso do Conde à sede da fazenda. Naquela época, durante o período do inverno amazônico, era comum o terreno ficar bem alagado. O “Caminho das Pedras” só podia ser usado pelo Conde para não sujar os calçados de lama. Por ser considerado um símbolo de luta e instrumento de valorização da identidade e história do povo quilombola, a construção de pedras está em processo de tombamento como Bem Cultural de Natureza Material, por meio do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan).

Com o passar dos séculos, a posse da comunidade passou por diferentes conflitos até que, em 1999, a Comunidade Abacatal teve o território regularizado pelo Instituto de Terras do Pará (Iterpa), sendo o quinto quilombo titularizado no Estado. De acordo com a Associação de Moradores e Produtores Quilombolas do Abacatal – Aurá (Ampqua), a comunidade possui 518 hectares e atualmente abrange mais de 150 famílias residentes, totalizando cerca de 550 moradores que têm na agricultura familiar seu principal meio de subsistência.

Situada a cerca de dez quilômetros da Rodovia BR-316, a Comunidade Abacatal é o quilombo mais próximo do perímetro urbano da Grande Belém. Na área, há uma escola municipal, uma Unidade de Estratégia Saúde da Família (ESF), a sede da Ampqua, igrejas, campos de futebol e casas de farinha artesanal. O espaço do quilombo também recebe projetos da Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural do Estado do Pará (Emater).

Ineditismo
Com o objetivo de promover o fortalecimento da cidadania na comunidade, na última quinta-feira (21), o TCE-PA realizou uma palestra na sede da Ampqua, no Território Quilombola do Abacatal, como parte das ações do Projeto TCE Cidadão Comunidade. A palestra foi conduzida pela presidente da Corte, conselheira Rosa Egídia Crispino Calheiros Lopes, que abordou como é feita a obtenção, gerência e uso dos bens públicos e qual a importância da prestação de contas desses recursos.

A ação inédita na comunidade ouviu dúvidas, comentários e sugestões da plateia formada por moradores do quilombo e também orientou sobre como procurar a Ouvidoria do órgão, canal de representação da sociedade junto ao TCE-PA e agente indutor do aprimoramento do processo de gestão do Tribunal.

Nesta perspectiva, o Quilombo do Abacatal poderá ter subsídios para contribuir no fortalecimento da cultura da política participativa, em que cada morador, engajado ou não em associações civis, é convidado a exercer o papel de sujeito no planejamento, gestão e controle das políticas públicas.

Para a presidente Rosa Egídia Crispino Calheiros Lopes, é fundamental apresentar à comunidade o papel dela em acompanhar a atuação da administração pública e estimular o conhecimento sobre o controle social e as ferramentas disponíveis na sociedade para realizá-lo.

Rosa Egídia Crispino Calheiros Lopes
Rosa Egídia Crispino Calheiros Lopes, presidente do TCE/PA. Foto: Mauro Ângelo/ Diário do Pará.

“Mostrar a atuação do TCE-PA para os moradores do Abacatal é uma forma de fomentar a condição de direitos e deveres do cidadão, levando à pessoa o conhecimento do potencial que ela tem de também fiscalizar o uso dos recursos públicos e ajudar o Tribunal por meio da Ouvidoria”.

A secretária da Ampqua, Thamiris Teixeira, 28 anos, aproveitou para tirar algumas dúvidas e afirma que, a partir da palestra, os moradores da comunidade aprenderam e souberam mais sobre a importância da gestão dos recursos públicos estaduais e como isso impacta diretamente na vida dos habitantes no Pará, principalmente a população quilombola.

“Aqui todo mundo paga seus impostos direitinho. A gente cumpre os nossos deveres enquanto cidadãos. Então, merecemos respeito por parte das organizações públicas e também ser ouvidos”.

Uma das maiores defensoras do Abacatal, a artesã Turi Omonibo Cardoso, 38, afirma que o acesso a políticas públicas para quilombolas é bem difícil e que a fiscalização dessas políticas é ainda mais complicada para quem mora fora dos grandes centros urbanos, devido à dificuldade de acesso a tecnologias, como a disponibilidade de internet.

A artesã Turi Omonibo Cardoso
A artesã Turi Omonibo Cardoso Foto: Mauro Ângelo/ Diário do Pará.

“Ter o TCE-PA dentro do nosso território para nós esclarece algumas coisas e nos dá caminhos de acesso mais rápido, porque a gente é fiscalizador das políticas públicas para territórios, tanto originários como tradicionais quilombolas. Então, ter esclarecimento de canais mais rápidos que tenham mais resultados imediatos para nós é de fundamental importância”.

A agricultora Raimunda Seabra, 85, e o filho Edilson da Silva, 58, vivem do que produzem na Comunidade Abacatal, com a plantação de bacaba, açaí e também o cultivo de mandioca para a extração das folhas de maniva. Ambos afirmam que a vida na comunidade é tranquila e que o TCE-PA despertou a curiosidade sobre como funciona a fiscalização dos recursos públicos. “É bom a gente ser ouvido para tirar dúvidas e ter instrução para a comunidade”, comentou o agricultor Edilson da Silva.

Edilson da Silva, 58 anos. Foto: Mauro Ângelo/ Diário do Pará.
Edilson da Silva, 58 anos. Foto: Mauro Ângelo/ Diário do Pará.

Quem também vive da roça é Patrícia dos Santos Silva, 33, que observa no quilombo a importância de ser ouvida pelo poder público, no caso representado pelo TCE-PA. Conforme a agricultora, saber como funciona a destinação das verbas públicas é fundamental para garantir que os recursos sejam gerenciados e utilizados de forma eficiente e mais igualitária para a população. “Enquanto quilombola, é importante a gente saber como fiscalizar e cobrar”, afirmou.

“A comunidade quilombola é composta de cidadãos. Então, o integrante da comunidade também observa o que ele considera que merece melhoria, o que ele entende como uma política pública que precisa ser desenvolvida. A participação do cidadão no governo e na administração pública é o exercício da cidadania deles. E é isso que a gente precisa levar ao cidadão para que o próprio Tribunal, por meio deles, chegue a mais lugares”, explicou a presidente do TCE-PA, Rosa Egídia Crispino Calheiros Lopes.

A ação no quilombo ocorreu um dia após a celebração do feriado do Dia Nacional da Consciência Negra (20), com o propósito também de apresentar à comunidade o Pacto Interinstitucional Pró-Equidade Racial, assinado no dia 1º de outubro deste ano, que visa contribuir e fomentar a promoção da equidade racial no território paraense por meio da atuação em rede entre as instituições participantes, com enfoque em ações pedagógicas e orientadoras, no âmbito de atuação dos participantes.

O público também teve acesso ao Manual de Boas Práticas Pró-Equidade Racial, material elaborado em parceria com a Universidade Federal do Pará (UFPA). A obra sistematiza boas práticas com potencial de conduzir as instituições sobre a diversidade étnico-racial.

A iniciativa parte do controle externo para, de forma orientadora e preventiva, construir alianças com órgãos jurisdicionados e outras instituições visando ao planejamento e à implantação de ações institucionais e políticas públicas que revertam a desigualdade racial, promovendo a inclusão e a desarticulação de práticas discriminatórias que afetam a população negra.

Processo de escuta é visto como ação positiva, afirma pesquisador

O geógrafo e pesquisador da Universidade do Estado do Pará (Uepa), Aiala Colares, em parceria com o Instituto Mãe Crioula, ministra aulas para jovens no Abacatal sobre formação política e preparação para ingresso nos Processos Seletivos para quilombolas nas instituições públicas de ensino superior paraenses. De acordo com o professor, é importante destacar que as comunidades quilombolas historicamente tiveram seus direitos negados, foram silenciadas e não são ouvidas na maioria das vezes no que diz respeito à garantia de acesso a políticas públicas.

“Na atual conjuntura, considerando a importância que essas comunidades têm para a preservação do meio ambiente e da biodiversidade, o processo de escuta e participação delas nas questões que envolvem gestão pública surge como a possibilidade de inclusão dessas comunidades, sobretudo com destaque para o Abacatal, nas políticas estratégicas de construção de infraestruturas que possam potencializar vetores de desenvolvimento”, afirma Aiala Colares.

Ainda segundo o pesquisador, existem inúmeros desafios a serem enfrentados, a exemplo da regulação fundiária, das políticas ambientais e da abordagem sobre a educação escolar quilombola. “O processo de escuta que envolve os quilombolas é visto por essas comunidades como algo extremamente positivo, pois são pautas que podem ser incluídas nas políticas públicas de Estado direcionadas para seus territórios”, comenta Aiala Colares sobre a iniciativa de política participativa promovida pelo TCE-PA.

FICHA TÉCNICA

  • Repórter: Rafael Rocha
  • Fotógrafo: Mauro Angelo
  • Produção: Carla Azevedo
  • Edição de texto: Clayton Matos
  • Edição de foto: Octávio Cardoso
  • Auxiliar: Carlos Gondim