Cintia Magno
Ao avistar um inseto tão pequeno voando às proximidades de alguma flor é até difícil imaginar, mas as abelhas desempenham papel fundamental para a manutenção da biodiversidade e da própria produção de alimentos. De acordo com dados divulgados pela Associação Brasileira de Estudo das Abelhas (A.B.E.L.H.A), mais de 60% das plantas cultivadas para a produção de alimentos no Brasil apresentam algum grau de dependência da polinização animal, sendo que as abelhas representam 87% das espécies de polinizadores.
A bióloga da Associação Brasileira de Estudo das Abelhas, Katia Aleixo, explica que as abelhas voam de flor em flor para coletar alimentos, principalmente o pólen e o néctar, e nesse processo podem promover a polinização, que é a transferência do pólen contido na antera (estrutura masculina) para o estigma (estrutura feminina) da flor.
A polinização tem como consequência a fecundação e a formação de frutos e sementes. Daí a contribuição delas tanto para a manutenção da biodiversidade, quanto para a produção agrícola. “Enquanto na natureza as abelhas garantem a reprodução das plantas com flores silvestres e sua manutenção nos ecossistemas naturais, na agricultura elas são responsáveis pelo aumento da produção e melhora da qualidade dos frutos e sementes dos cultivos”.
Ainda que existam outros animais que também realizam esse trabalho, como moscas, vespas, besouros, borboletas, beija-flores, morcegos e lagartos, e ainda outros agentes polinizadores, como o vento, a bióloga explica que as abelhas são os polinizadores mais eficientes, já que a maioria das espécies alimenta-se exclusivamente de recursos florais. Dessa forma, elas precisam visitar as flores.
“Na agricultura, 75% dos cultivos alimentares dependem ou são beneficiados pela polinização realizada pelas abelhas e outros animais. No Brasil, mais de 60% das plantas cultivadas para a produção de alimentos apresentam algum grau de dependência por polinização animal, incluindo frutíferas, leguminosas, oleaginosas e outras culturas com alto valor agregado, como a castanha-do-brasil e o café”, aponta Katia Aleixo.
“Do ponto de vista monetário, o benefício dos polinizadores animais na agricultura mundial foi estimado entre US$ 235 bilhões e US$ 577 bilhões, anualmente. No Brasil, foi calculado que a polinização relacionada à produção agrícola tem um valor de R$ 43 bilhões anuais (dados de 2018)”.
Diante de valores tão expressivos, Katia destaca que é importante considerar que a dependência de polinização por animais varia entre os cultivos agrícolas e, inclusive, de uma variedade para outra. Enquanto alguns cultivos dependem da visita de polinizadores para frutificarem – como é o caso, por exemplo, do abacate, do açaí, da acerola, da maçã, do maracujá, do melão, entre outros -, existem outros cultivos que não dependem necessariamente, mas que são beneficiados de diferentes maneiras pela polinização realizada pelas abelhas – como é o caso do café, do feijão, da laranja e do morango.
“Esses cultivos até produzem frutos por polinização realizada pelo vento ou por autopolinização, no entanto, esse processo não é capaz de assegurar o potencial máximo produtivo das plantas. No café, por exemplo, a polinização realizada pelas abelhas pode elevar a produção em até 30%. Na laranja, um exemplo de variedade que se beneficia da polinização cruzada é a Pera Rio, cuja produção de frutos aumenta em 35% quando suas flores são visitadas por polinizadores, além de serem mais pesadas e mais doces”.
RISCO
Não é à toa que o risco de extinção de agentes polinizadores seja uma preocupação a nível global. Sem o trabalho desenvolvido pelas abelhas, ficaria inviável garantir a sustentabilidade da produtividade agrícola e a disponibilização de frutos e sementes diversificados.
“Os cientistas concordam que o planeta está passando atualmente pela sexta extinção em massa, causada principalmente pelas atividades humanas. Isso significa que não é só o grupo das abelhas que possuem espécies ameaçadas de extinção, mas também vertebrados (mamíferos, aves, anfíbios, répteis), outros insetos (como borboletas e besouros) e plantas”, alerta a bióloga Katia Aleixo.
“Há sim evidências científicas de que populações de abelhas e outros polinizadores estão em declínio, o que significa que algumas espécies não são mais encontradas em determinados locais e outras estão menos abundantes na natureza, comparado com levantamentos no passado”.
Um estudo publicado em janeiro de 2021 avaliou a situação global do declínio das abelhas e constatou que o número de espécies de abelhas encontradas a cada ano no GBIF – sistema que disponibiliza dados de coleções biológicas sobre biodiversidade-, tem diminuído desde a década de 1990.
“Foram encontradas na base de dados aproximadamente 25% menos espécies entre 2006 e 2015, comparado a anos anteriores a 1990. Embora esses resultados devam ser interpretados com cautela, dada a natureza heterogênea dos dados e potenciais vieses na coleta de dados, os resultados sugerem a necessidade de ações rápidas para evitar o declínio desses polinizadores”.
Ao mesmo tempo em que questões como mudanças no uso e na ocupação do solo, as mudanças climáticas, o uso indiscriminado de defensivos agrícolas, entre outros, colocam em risco a existência de agentes polinizadores, por outro lado, a criação de colônias de espécies de abelhas nativas, também chamadas abelhas sem ferrão, tem potencial para contribuir com a conservação das diferentes espécies.
Katia destaca que a meliponicultura é uma atividade altamente sustentável, na medida em que é fonte de renda para muitas comunidades rurais, tradicionais e indígenas, com menor impacto à biodiversidade.
“Quando praticada de forma correta, ela contribui, sim, para a conservação das espécies de abelhas sem ferrão e manutenção dos serviços de polinização”, reforça, sem deixar de ressaltar três questões que precisam ser consideradas para se promover a conservação das populações de abelhas sem ferrão e a sustentabilidade da meliponicultora, a criação apenas de espécies de ocorrência natural no local onde se deseja instalar o meliponário, o não transporte de colônias para longas distâncias e a não extração de ninhos da natureza.
Ampliação da produtividade do açaí entre 30% e 70%
Considerando a realidade local, mais do que a produção do próprio mel, a meliponicultora vem sendo impulsionada pelos serviços ambientais prestados por determinadas abelhas à uma importante cadeia do Estado, a do açaí.
Quando se trabalha a polinização dirigida, é possível ampliar a produtividade do açaí entre 30% e 70%, sem que seja necessário comprar novas áreas ou fazer plantios.
Pesquisador da Embrapa Amazônia Oriental, o engenheiro agrônomo e doutor em ciência animal, Daniel Santiago Pereira, explica que o açaí está entre os grupos de plantas que, apesar de não depender exclusivamente da polinização feita pelas abelhas, podem ter sua produção potencializada pelo serviço prestado por esses animais.
“No caso do açaí, o vento pode polinizar, assim como outras abelhas que estão dentro do sistema, mas quando se trabalha com a polinização dirigida você pode ampliar a produtividade entre 30% e 70%”, afirma. “Aqui no Pará, a açaicultura está impulsionando a meliponicultora porque, com os produtores tendo essa informação em mãos, começou uma corrida em busca das abelhas”.
Em um contexto geral, Daniel considera que a apicultura (criação de abelhas com ferrão), hoje, está mais evoluída no país, na medida em que a atividade conta com literaturas de mais de 300 anos, desde a Grécia Antiga. Porém, mais recentemente tem-se visto um aumento da atividade de meliponicultora (criação de abelhas sem ferrão) também.
“Na apicultura trabalha-se praticamente uma única espécie de abelha, com várias subespécies ou raças, já as abelhas sem ferrão são muitas espécies e essas espécies têm uma relação muito próxima com o ambiente em que elas vivem, talvez por isso não tenham sido muito trabalhadas no passado”, considera.
“No mundo todo existem em torno de 500 espécies de abelhas sem ferrão, sendo que metade dessas espécies está no Brasil e metade do que foi catalogado no Brasil está no Estado do Pará”, aponta. “Então, há aproximadamente 115 a 120 espécies de abelhas sem ferrão catalogadas no Pará, sendo que dessas 115 a 120, aproximadamente 20 espécies tem-se relatos de criação em colmeias, com a aplicação de manejo”.
Mais do que o interesse na produção do mel, o que também vem despertando interesse na meliponicultora é justamente os outros serviços ambientais prestados pelas abelhas e que podem beneficiar, sobretudo, o agronegócio. Daniel aponta que, por exemplo, na região Centro-Oeste do país já existem trabalhos envolvendo abelhas sem ferrão características daquela região na cultura do café.
Já no Estado do Pará, a maior relação tem sido relacionada à cultura do açaí. “Surpreendentemente, a abelha que tem uma relação muito próxima com açaí é uma abelha que os produtores, sem conhecimento, terminam exterminando, que é a Abelha Arapuá”, explica o pesquisador da Embrapa Amazônia Oriental.
“Não é uma espécie que aceita domesticação, no entanto, como os produtores carecem do destaque a essa abelha, nós fizemos um estudo identificando algumas espécies que poderiam ter relação com o açaí e identificando se, no Estado do Pará, tem uma espécie de abelha que aceita o manejo na colmeia. E a que tem uma relação muito próxima é a Abelha Canudo, chamada assim porque ela faz um canudinho de cera na frente da colmeia. É justamente essa abelha que a gente está trabalhando com a cultura do açaí”.
MEL
Até algum tempo atrás, não se tinha muito o hábito de criar a Abelha Canudo, justamente por ser uma abelha que não produz muito mel, já que ela armazena muito pólen nas colmeias, mas a identificação da sua importância para o aumento da produtividade do açaí acabou gerando uma demanda considerável por enxames dessa espécie, inclusive já ocasionando o encarecimento do preço de comercialização das colônias.
“Está havendo, nestes sistemas, cada vez mais o interesse por abelhas específicas para polinização, como é o caso da Abelha Canudo que, apesar de produzir uma quantidade muito pequena de mel, em torno de 300 ml a 500 ml por ano, atualmente, quando colocadas dentro da área de açaí a gente sabe que tem um produto que tem a identidade do açaí, o mel monofloral do açaí de uma abelha nativa paraense”, considera o engenheiro agrônomo.
“Além disso, o produtor acaba diversificando a atividade e trazendo para dentro desses sistemas outras abelhas também que produzem o mel, como a Uruçu-Amarela, a Uruçu-Cinzenta, Uruçu-Boca de Renda. É justamente neste contexto que o Pará, hoje, entra como referência na meliponicultora porque com uma atividade de importância agrícola e alimentar no Estado como a do açaí, há um impulsionamento da meliponicultora a níveis que eram inesperados há cinco, dez anos”.
Saiba mais
COM E SEM FERRÃO
- A bióloga da Associação Brasileira de Estudo das Abelhas, Katia Aleixo, explica que não há diferença entre os serviços ambientais prestados pelas abelhas com ferrão e sem ferrão. Ambos os grupos de abelhas promovem a polinização, tanto de plantas silvestres quanto cultivadas. Contudo, as características corporais e comportamentais das diferentes espécies de abelhas definem quais plantas elas polinizam ou se elas apenas visitam para a coleta de alimentos.
ALERTA
Não há um único motivo relacionado ao declínio das populações de polinizadores, mas sim vários. Os principais fatores apontados são:
- Mudanças no uso e na ocupação do solo, que resultam na redução do hábitat natural por desmatamento, queimadas e urbanização, gerando uma diminuição da disponibilidade de alimento e locais para a construção de ninhos;
- Mudanças climáticas, que alteram, por exemplo, o regime de chuvas, causando mudanças nos períodos de floração das espécies vegetais e, consequemente, na oferta de alimento para os polinizadores;
- Disseminação de doenças e parasitas (vírus, bactérias, fungos, protozoários, ácaros), espalhados pelo homem por meio do transporte inadequado de colmeias e troca de material contaminado;
- Uso indiscriminado de defensivos agrícolas;
- Competição com espécies exóticas invasoras.
Fonte: Katia Aleixo, bióloga da Associação Brasileira de Estudo das Abelhas