Pará

A luta para conseguir fazer Kayla virar cidadã brasileira

Jaqueline e Kayla Ferreira: após ter a filha na Guiana, a mãe não consegue garantir direitos básicos para a menina no Brasil, mesmo tentando provar que o pai também é paraense. Foto: Mauro Ângelo/ Diário do Pará.
Jaqueline e Kayla Ferreira: após ter a filha na Guiana, a mãe não consegue garantir direitos básicos para a menina no Brasil, mesmo tentando provar que o pai também é paraense. Foto: Mauro Ângelo/ Diário do Pará.

Luiz Flávio

Imagine a situação de engravidar na sua terra natal, dar à luz num país estrangeiro, não conseguir registrar seu filho, retornar ao seu país de origem e também ser impedida de tirar a certidão de nascimento, colocando seu filho na condição de apátrida que, segundo a legislação, é a “pessoa que não é considerada como nacional por nenhum Estado”. Apesar de absurda, a situação é mais comum do que parece e atinge muitas pessoas pelo mundo.

A Agência da ONU para Refugiados (ACNUR) estima que até o início de 2023 cerca de 4,3 milhões de pessoas em todo o globo eram apátridas. Esse dado é muito difícil de ser obtido, porque as pessoas apátridas normalmente não são contabilizadas em bases de dados governamentais, devido à sua falta de documentação.

Até 2020, o Brasil abrigava 16 pessoas reconhecidas formalmente como apátridas, segundo dados do Ministério da Justiça e Segurança Pública. Uma delas é Kayla Louise Ferreira Sousa, de apenas 6 anos, filha da dona de casa Jaqueline Pereira Ferreira e do motorista Carlos Henrique Freitas Souza, ambos com 31 anos e paraenses de nascimento.

Como até hoje não possui registro, a filha do casal se encontrada na complicada situação de não poder se matricular numa escola pública, tomar vacinas e sequer receber atendimento médico no Sistema Único de Saúde (SUS). A batalha judicial para tentar registrar a criança já se arrasta há quatro anos, ainda sem previsão de solução.

Jaqueline conta que engravidou aqui no Pará e foi sozinha para a Guiana Francesa, em janeiro de 2018, após um desentendimento com o pai da sua filha. Já estava no sexto mês de gestação. “Fui clandestina para a Guiana e tive minha filha dia primeiro de abril de 2018 num hospital da cidade de Cayenne, mas não pude registrá-la. Como eu estava ilegal no país, corria o risco de ser expulsa se tentasse tirar a certidão”, relembra.

Após quase três anos na Guiana, Jaqueline retornou ao Brasil em dezembro de 2020, para que o pai conhecesse a filha e pudesse registrá-la. “Aí começou toda essa situação complicada: como não tinha o registro de nascido vivo e nem a certidão de nascimento dela na Guiana, também não pude fazer o registro aqui. Nós não sabíamos da burocracia que seria…”

O pai deu entrada, então, no pedido de registro pelo Conselho Tutelar do bairro do Maguari que orientou o casal a procurar o Ministério Público. O MP oficiou o Cartório de Registros Civis de Ananindeua para proceder o registro da menor. Diante da ausência da certidão de nascido vivo dela, o cartório suscitou dúvida para adotar o procedimento e encaminhou o caso para o Fórum de Ananindeua, gerando um processo, julgando procedente a dúvida suscitada pelo cartório, o que acabou por atrasando em três anos uma solução para o caso.

“Essa situação jurídica durou anos e não se resolveu porque a Justiça tem muitas dúvidas sobre a paternidade. Fomos chamados umas, duas vezes pela Justiça, mas nada foi resolvido… Uma emissora de televisão mostrou nosso caso numa reportagem e conseguimos uma pessoa que pagou um advogado, mas o caso retornou novamente para a Comarca de Ananindeua. E já estamos aguardando a resposta, que nunca sai…”, diz a mãe, amargurada.

 

Família enfrenta muitos obstáculos em busca da cidadania

Para complicar ainda mais a situação, Kayla possui a saúde frágil com quadro de asma e vários problemas respiratórios, além de alergia alimentar. “Perdi as contas de quantas vezes ela foi internada do hospital Abelardo Santos, em Icoaraci, o único local onde consigo atendimento porque possuo uma ficha de comparecimento da primeira vez que ela foi atendida”.

Sem registro, ela também não pôde tirar carteira do SUS ou de vacinação e sequer pode ter um plano de saúde. Para estudar, só se for em escola particular. “Rezo todo dia para que minha filha tenha muita saúde, porque se ela morresse seria uma luta para enterrá-la…”, diz.

Ela diz que a luta principal é para que a Justiça estadual autorize a realização do exame de DNA para que, finalmente consiga provar que Kayla. é sua filha e de seu marido. “Amamos demais a nossa filha e tememos pela saúde dela, e pelo seu futuro como mulher e como profissional. Ela não pode mais permanecer como uma pessoa que não existe oficialmente em nosso país. Estou cansada, sem esperança e muito triste… Quem em sã consciência iria querer uma criança que não seria sua hoje em dia? Ela é nossa filha sim! Amamos ela e espero que algum dia alguém nos ajude”.

Lucas Wanzeller Rodrigues, um dos advogados do casal, entrou em outubro do ano passado na vara civil e empresarial de Ananindeua com uma ação de Reconhecimento de Maternidade e Paternidade cumulada com Registro Civil e Tutela de Urgência solicitando um exame de DNA para comprovar que Jaqueline e Carlos Henriques são realmente os pais biológicos da menor.

Ele ressalta que os pais da menina procuraram várias clínicas que realizam exame de DNA, e que todas exigem certidão de nascimento o que inviabiliza a realização do exame. “A situação da menor é muito delicada. A solução jurídica para o caso é inicialmente a realização do exame de DNA para comprovar a paternidade e maternidade dos genitores para posteriormente fazer o registro civil da menor. E quando ela alcançar a maioridade poderá optar pela nacionalidade brasileira, tendo em vista que é filha de brasileiros natos”.

Segundo o advogado a criança não pode ter seu direito a uma nacionalidade negado. “A criança vem sendo punida desde que nasceu pois não tem plena capacidade para exercer a opção de sua nacionalidade brasileira, ato para o qual não pode ser representada. A Justiça precisa garantir o direito da criança como brasileira nata e todos os direitos que essa condição traz, através da realização dos exames de DNA para comprovar a paternidade e maternidade e, consequentemente, viabilizar seu registro civil! ”.

Negar ou dificultar o registro civil criança, diz Wanzeller, implica em ferir princípio constitucional básico da dignidade da pessoa humana constante do artigo 1º, inciso III da Constituição, principalmente quando existem elementos suficientes que indiquem o local e a data de nascimento e a respectiva filiação, “sendo que é obrigatório o registro de todas as pessoas naturais brasileiras nascidas no estrangeiro, conforme preleciona a Lei nº 6.015/73, de Registros Públicos”.