CRENÇA

A força subjetiva e mobilizadora da fé

O que se assemelha entre as crenças é a percepção de que a fé é capaz de mobilizar uma força interna. Confira os relatos de fé!

A fé é, por essência, uma experiência subjetiva
A fé é, por essência, uma experiência subjetiva Foto celso Rodrigues/ Diário do Pará.

Em diferentes religiões, a fé é capaz de mobilizar milhares de pessoas. Independentemente da crença de cada uma, esse sentimento que não pode ser visto ou tocado é muitas vezes atribuído à força e resiliência conquistada por alguém diante de um grande desafio. Em outros casos, é a própria fé em uma força superior que dá sentido à existência na Terra. Mas, afinal, o que é a fé?

Diferente de qualquer exatidão científica, a fé é, por essência, uma experiência subjetiva e que faz referência à crença pessoal em alguma coisa ou em alguém. Não à toa, a fé é uma virtude tão valorizada pelas religiões. “A ciência não comprova a fé que se vive, ela é algo subjetivo na vida da pessoa, do indivíduo. E as religiões têm na fé a principal ferramenta para que as pessoas possam crer nos seus valores, nos seus dogmas, nos seus ensinamentos”, explica o cientista da religião, Márcio Neco.

Mas ainda que a fé seja um sentimento comum na maioria das religiões, também existem diferenças entre os conceitos de fé em cada doutrina. Márcio Neco destaca que algumas religiões têm uma fé monoteísta, acreditam em um só Deus. Já outras religiões professam uma fé politeísta, em que acreditam em vários deuses e deusas.

“Também é importante a gente destacar, como fé nas religiões, que nem toda fé é salvífica, mas nós temos, por exemplo, no cristianismo uma fé salvífica: de que um dia seremos salvos deste mundo, de que iremos para um outro mundo, para um outro plano”.

O que se assemelha entre as crenças é a percepção de que a fé é capaz de mobilizar uma força interna para se alcançar até mesmo o que se julga impossível. “Muitas vezes o ser humano encara determinados desafios como algo impossível de realizar, mas quando ele transfere isso para uma fé que ele tem, ele alinha o pensamento para algo maior. A fé é alinhar o pensamento a algo maior”, considera o cientista da religião.

“A pessoa não consegue ver uma possibilidade de realizá-las, mas quando ela transmite uma fé para algo maior, ela passa a ser coerente com o que ela diz, com o que ela faz, com o que ela realiza e, com isso, vai ocorrer uma transformação a partir dessa coerência e é bem provável que, de fato, ela consiga resolver situações que pareciam ser impossíveis. E então, a sua fé vai fazer com que ela nomeie isso talvez de milagre, de graça, de uma benção”.

Dentro da crença em que a aposentada Terezinha Carvalho Teles, 59 anos, foi criada e que segue até hoje, não há dúvidas de que a fé em Deus é capaz de realizar até mesmo o impossível. E para fazer esse pedido chegar mais rápido a Jesus, ela recorre à mãe Virgem Maria. “A fé para mim é tudo. E eu acredito, inclusive, que eu sou prova viva da minha fé porque já aconteceram vários milagres na minha vida. Hoje eu estou aqui pela fé que eu tenho em Jesus e Nossa Senhora”.

Natural de Oeiras do Pará, a católica conta que busca exercitar a sua fé frequentemente, participando das missas sempre que possível e rezando o terço mariano todos os dias. Mais do que os pedidos de bênçãos, nas suas orações ela pede, inclusive, que a sua fé seja cada vez maior.

“Eu peço todos os dias para Deus não deixar eu perder a minha fé, para aumentar cada vez mais a minha fé. Se eu não tivesse fé, com certeza a vida seria mais difícil, eu não estaria mais de pé. Todos os dias eu peço “meu senhor e meu Deus, eu creio, mas aumentai a minha fé, não deixe eu perder a minha fé porque a fé é tudo”, considera. “E eu procuro ser fiel a Nossa Senhora também porque ela é a intercessora”.

MARIA

A crença na intercessão de Maria também foi apresentada à biomédica Maria Ester Monteiro, 23 anos, quando ela ainda era criança. Criada em uma família católica, ela acredita que a fé é o que dá força para enfrentar as situações adversas que aparecem no dia a dia.

“Desde criança eu tive uma família que é bastante católica, eu faço parte de uma comunidade católica e nessa comunidade a fé em Deus é um dos nossos pilares, é o que nos faz perseverar realmente no dia a dia. Então, desde criancinha eu já era levada na igreja, já era levada nessa comunidade católica e estou aqui hoje. Eu estou aqui pedindo pelo meu dia, pedindo para que tudo aquilo que eu vá fazer no meu laboratório, tudo aquilo que eu que eu vou fazer no meu trabalho, realmente dê tudo certo”.

A fé que Ester tem em Deus enquanto o principal pilar de sustentação da vida é o que faz, inclusive, que em suas orações ela entregue nas mãos Dele o destino daquilo que, aqui, em Terra, ela batalha para alcançar. “Fé é entregar nas mãos de Deus, com a confiança de que Ele é o rei de todas as coisas, Ele que guia todo o universo. Então, eu acho que sem a fé tudo seria muito diferente porque eu não teria um apoio ou alguém que eu pudesse me firmar. E não é porque tudo dá certo, nem sempre as coisas dão certo, mas por ter fé que tudo pode melhorar e por confiar em Deus, entregar nas mãos dele porque eu mesma sou muito fraca e não consigo sozinha”.

Nos momentos em que acredita que não vai conseguir realizar algo sozinha, a técnica de enfermagem Jocineuma Colares, 39 anos, também conta com a fé. Criada na religião evangélica, ela acredita que a sua fé vem de Deus. “Eu acredito que a fé é algo que não é concreto. Não vemos e nem tocamos, mas podemos sentir. Eu acredito que a fé seja Deus”, reflete. “Eu tenho uma fé muito grande. Quando eu tenho algo para fazer e eu vejo que eu não vou conseguir, eu digo ‘Jesus, eu tenho fé em ti e confio’”.

Jocinelma Colares, evangélica. Foto celso Rodrigues/ Diário do Pará.

Ainda que a situação seja adversa, Jocineuma não tem dúvidas de que o poder de Deus é capaz de resolver todos os problemas. Para ela, é Ele quem pode fazer tudo pelos que estão em Terra. Mas lembra que as coisas nem sempre acontecem na hora que o ser humano deseja. “Às vezes está tão difícil a situação que a gente diz ‘meu Deus, só tu podes me ajudar’ e aí eu vou naquela fé de que eu vou conseguir”, conta. “E às vezes não é no tempo da gente, mas é no tempo de Deus. Saber esperar também faz parte da fé, esperar é a melhor confiança que a gente tem”.

Diante dessa força alimentada pela crença em Deus, a técnica de enfermagem não tem dúvidas de que a sua vida seria muito diferente se a fé não existisse. Não à toa, ela busca exercitar essa fé diariamente, crendo que esse sentimento está presente em todos os lugares e nas diferentes situações que a vida apresenta.

Trabalhando em uma instituição que segue a doutrina adventista, Jocineuma faz questão de participar do grupo de oração do trabalho, ainda que ela seja de outra igreja. “Eu não sou adventista, eu fui criada na Assembleia de Deus, mas eu sempre penso que a fé está em todos os dias, todos os dias a gente tem que acreditar em Deus e confiar”, considera. “E no hospital a gente trabalha com um grupo de oração. Todos os dias a gente faz uma oração e eu sou líder do pequeno grupo de lá. Eu não sou adventista, mas Deus é só um. Basta a gente crer”.

Constituição brasileira assegura a liberdade de crença

Diante da importância e da potência que a fé pode significar para tanta gente, é natural pensar que cada pessoa tem o direito de exercê-la da maneira que achar melhor, e até de não exercer, se não quiser. Por meio da Constituição Federal, os brasileiros têm assegurado o pleno direito de vivenciar a fé na crença que escolherem – apesar de, infelizmente, ainda serem registrados casos de intolerância e racismo religioso no país.

O cientista da religião Márcio Neco lembra que na própria história mundial é possível encontrar situações em que, em nome de interesses pessoais, políticos e econômicos, se buscou manipular através da fé. Mas ele lembra que todas as religiões e crenças têm que ser respeitadas. “Infelizmente, a fé por vezes é utilizada para tentar impor a verdade de uns poucos, quando na verdade a fé e a liberdade religiosa, no Brasil, são direitos assegurados pela Constituição”, destaca.

“Por vezes, as pessoas são muito preocupadas com o tamanho da fé. Mas, na verdade, deveriam se preocupar com a qualidade da fé delas. Ter fé é crer em algo, porém, a fé deve nos levar a uma ação que deve refletir, sobretudo na nossa cultura ocidental, em boas ações, em gestos de amor, de perdão, de compreensão. Então, muito mais do que o tamanho da minha fé, eu deveria ter uma preocupação com a qualidade da minha fé, se de fato eu tenho externado a minha fé com boas ações”.

“A fé, para mim, é como o vento. O vento tu não vê, mas tu sentes”

Mam’eto Nangetu
Mam’eto Nangetu
FOTO: DIVULGAÇÃO
Mam’eto Nangetu FOTO: DIVULGAÇÃO

Iniciada no Candomblé há 40 anos, Mam’eto Nangetu, do terreiro Mansumbandu Kenkue Neta, encontra na natureza a melhor analogia para explicar o que é a fé. “A fé, para mim, é como o vento. O vento tu não vê, mas tu sentes. Então a fé, para nós, é tudo”, reflete. “Eu posso ser uma lavadeira, uma cozinheira, posso ter qualquer profissão, mas quando eu estou dançando com meu Nkisi [no Candomblé de Nação Angola, as divindades são chamadas de Nkisi, que seriam equivalentes aos Orixás], não é a Neide, não é a Mam’eto Nangetu que está dançando, e sim Nanã. Eu sou filha de Nanã. Então, para as nossas tradições a fé é fundamental”.

Mam’eto Nangetu explica que o terreiro é um local feito para acolher e cuidar de quem chega. Mas para que se consiga alcançar aquilo que se busca, é imprescindível ter fé, acreditar. “Na verdade, o terreiro é uma casa de cuidado. Eu posso preparar o melhor banho, mas se aquela pessoa não tiver fé que ela vai tomar aquele banho e vai ficar bem, que ela vai ter prosperidade, que ela vai ter sorte, não vai adiantar. Então, para nós, a fé é fundamental, assim como em qualquer religião”, pontua.

“Por exemplo, quando eu estou pegando nas águas doces, eu estou tomando bença de Oxum, de Dandalunda. Eu tenho fé que as águas me lavam, me curam, me dão saúde, me dão esperança. Eu acredito que se eu pego a minha cabeça e encosto em uma árvore, é como se eu estivesse encostando a cabeça na cabeça de Oxóssi, de Mutalambô. Então, a fé para mim é que eu cultuo a natureza para Oxóssi; para Katendê as folhas; a encruzilhada para Exu; para Oxum, Dandalunda as águas doces; as águas salgadas são Iemanjá; a lama é Nanã. Então, eu tenho que ter fé. A fé para mim é tudo”.

NATUREZA

Essa forte ligação com a natureza é natural dentro das religiões de matrizes africanas. Katia Nunes (Ekedy Gaba Aiyê), da casa Ilé Asé Iya Ogunte, explica que a constituição geral da fé, para os povos de comunidades de terreiro, é a ligação com os elementos da natureza.

“A fé, dentro das religiões de matrizes africanas, está relacionada e ligada aos elementos que constituem a criação do mundo, que são os elementos da natureza. Então, a nossa fé é construída a partir de todas essas possibilidades relacionadas à água, à mata, à terra, à estrada, à encruzilhada, às folhas”, explica. “Nós acreditamos que as nossas divindades estão interligadas com a relação da natureza. Por exemplo, Iemanjá, para nós, está interligada ao mar; Oxum interligada aos rios, às cachoeiras; Oxóssi é o grande caçador que habita dentro das matas sagradas; Ossain é o grande senhor das folhas e, para nós, não existe axé sem folha. Então, ele é o nosso grande senhor”.

Dentro deste entendimento, Katia explica que cada Orixá está interligado a um elemento que é vivo dentro das pessoas, até porque não é possível viver sem a água ou sem a terra onde se planta o alimento, por exemplo. Portanto, é centrada neste entendimento que ela exerce a sua fé. “Eu sou uma Ekedy, que significa mãe de Orixá. O meu nome de nação é Ekedy Gaba Aiyê. Foi o título que Iemanjá me deu para que eu me tornasse mãe de Orixá. Então, ser mãe do sagrado é o que me conduz na vida, é o que me conduz no processo do cuidar”, considera.

Katia Nunes. FOTO: DIVULGAÇÃO

“Eu sou a pessoa que cuida dos que dormem, das pessoas que são conhecidas como os rodantes para nós, das pessoas que incorporam. Eu tenho a responsabilidade de estar acordada para cuidar deste sagrado. Então, para mim, ser de Orixá está relacionado a este cuidado de um todo, é ter a relação com a natureza, mas ter a relação do cuidado do sagrado”.