Havia uma discussão no final dos anos 1970 sobre como o surgimento dos blockbusters afetava a indústria do cinema. Começou com “Tubarão” (1975) e atingiu o ápice com “Star Wars” (1977). A ideia em voga era a de que Steven Spielberg e George Lucas, com o sucesso estrondoso dos seus filmes, mudaram a mentalidade das plateias da época, tidas como sofisticadas e habituadas com o cinema europeu e os representantes da chamada Nova Hollywood, com suas produções autorais e viés mais artístico. A partir daquele momento, no entanto, a simplicidade da Era de Ouro estava de volta, priorizando o espetáculo e o entretenimento.
O “filme-pipoca” mudou a regra do jogo e causou polêmica. Seus críticos acusavam-no de infantilizar o cinema. Seus apoiadores, de financiá-lo. É uma questão delicada, passível de debate e que permanece atual quando vemos salas de cinema ocupadas com um único filme arrasa-quarteirão em detrimento de produções menores. Contudo, nesse texto, vou focar em apenas um aspecto: o da qualidade cinematográfica dessas obras, pois, embora haja uma falsa percepção de que sejam filmes descartáveis, quando bem feitos, eles sobressaem, isso é fato. Mais ainda, tornam-se parte da cultura e imaginário popular.
Os próprios filmes citados acima são exemplos. E o mais recente indicado a 11 estatuetas do Oscar, “Tudo em todo lugar ao mesmo tempo”, tem potencial para se inserir nesse grupo (Atualização: praticamente confirmado após vencer sete estatuetas: Melhor Filme, Direção, Atriz, Ator Coadjuvante, Atriz Coadjuvante, Montagem e Roteiro Original). O curioso é que o orçamento de 25 milhões de dólares, para os padrões de hoje, nem é a cotação de um blockbuster. É um valor bem modesto, por sinal. Sendo esse, talvez, o único detalhe que o diferencie de um autêntico filme-pipoca atual, embora ele o seja de alma e coração. O filme, aliás, se tornou o maior sucesso comercial da produtora A24, que acumulou prestígio com seus filmes “fora da caixinha” e de visão artística singular, o que poderia tornar a jogar luz na discussão proposta lá na década de 1970, não?
Enfim, mas vamos ao filme. Dirigido por Daniel Kwan e Daniel Scheinert, “Tudo em todo lugar ao mesmo tempo” é uma verdadeira montanha-russa. A roupagem é de um passeio insano e fantasioso, mas em seu cerne possui uma extremamente simples e ao mesmo tempo poderosa mensagem humanística. Essa dualidade, executada à perfeição, faz com que o filme conquiste merecidamente o seu espaço no cinema pipoca. Não existe nele nada de revolucionário, seja no conceito, na forma ou no conteúdo. É apenas a boa e velha diversão por meio de uma história contada com bastante criatividade. E isso não é demérito. Pelo contrário, realmente estava em falta uma obra boa e original deste tipo.
O filme acompanha Evelyn Wang (Michelle Yeoh), que emigrou da China com o marido Waymond (Ke Huy Quan), contra a vontade do pai. Os dois são donos de uma lavanderia e podem ir à falência por problemas com imposto de renda, caso a auditora fiscal Deirdre (Jaime Lee Curtis) resolva multá-los. Além disso, Waymond quer a separação, mas não sabe como abordar o assunto com a esposa, e Joy (Stephanie Hsu), a filha do casal, gostaria de apresentar a namorada Becky (Tallie Medel) para o seu avô, Gong Gong (James Hong), mas a mãe é contra. Uma rotina estressante de uma família disfuncional, sem dúvida, porém, revestida de “normalidade”, que é quebrada a partir da descoberta da existência de um intrincado multiverso que está à beira de um colapso.
Um dos grandes trunfos de “Tudo em todo lugar ao mesmo tempo” é manter o tom épico enquanto lida com dramas intimistas, como escolhas individuais e as consequências das nossas decisões durante a vida. Até porque Evelyn é a eleita para travar a batalha que salvará o multiverso por uma razão: essa sua versão não é boa o suficiente em nada do que se propôs a fazer, nunca levou seus interesses adiante. Algo a se pensar, não? Por outro lado, tem a mente aberta para aprender as habilidades de suas versões de outros universos, que serão essenciais para derrotar Jobu Tupaki, a grande vilã da história, cuja filosofia niilista de que nada importa dialoga perfeitamente com o grande mal desse século, a depressão – representada por um buraco negro em forma de donut.
É uma metáfora nada sutil sobre a importância do conhecimento e da gentileza. E, nesse ponto, o filme poderia resvalar no terreno do piegas – ok, algumas cenas não escapam disso, mas é perdoável –, o que é evitado na maioria das vezes pela forma com que são conduzidas as incursões de Evelyn pelo multiverso. Para ir de um universo a outro é necessária uma ação inusitada. Vale tudo. É divertido demais, abraça totalmente o nonsense. Já no multiverso temos de kung fu a dedos de salsicha. O absurdo é a tônica e você compra isso, porque existe uma lógica dentro de todo esse caos, que faz com que realmente nada seja em vão nas vivências de Evelyn. Ela aprende cada lição e sua visão de mundo aos poucos vai se ampliando e enriquecendo.
“Tudo em todo lugar ao mesmo tempo” pode, no final das contas, ser interpretado como um drama geracional que trata da condição humana. Mas, se você quiser fixar sua atenção nas doses cavalares de comédia, fantasia, sensibilidade e criatividade, fique à vontade. Um bom filme-pipoca também te dá essa oportunidade.
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