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"The Rocky Horror Picture Show": um fenômeno cultural e libertário

Não é crime buscar o autoconhecimento. “Não sonhe. Seja!”. Essa é a lição que o Dr. Frank-N-Furter pretende deixar aos terráqueos. Falsos moralismos não são tolerados por este espírito livre, um “doce e sensual travesti, do planeta Transexual, da galáxia Transilvânia”, como ele mesmo se define. A ordem é combatê-los e mostrar às pessoas que as suas vergonhas e amarras sociais são apenas obstáculos para a felicidade. Obstáculos esses que, no final das contas, são facilmente contornados com um simples movimento de quadril, um passaporte para a loucura e o prazer.

É a história do encontro desse cientista alienígena com um casal de humanos que você verá no cultuado “The Rocky Horror Picture Show”. O filme é a adaptação de um musical que homenageia os clássicos do terror e da ficção científica. Poderia até dizer que ele mesmo acabou tornando-se um dos maiores representantes desses gêneros. Mas dar-lhe um rótulo vai de encontro a tudo que ele prega.

O curioso é que a trajetória do filme começou como um fracasso de bilheteria. O “boom” veio um pouco depois do lançamento, no boca a boca, sendo apresentado em sessões da meia-noite, o que acontece ainda hoje, mundo afora, com direito aos espectadores caracterizados como os personagens, para criar o clima de interação entre a plateia e os atores na tela, como ocorria na década de 1970.

É fácil imaginar o porquê. “The Rocky Horror Picture Show” é um filme transgressor, que rompeu barreiras, transcendeu a sua época e assumiu uma importância cultural e histórica. Imagine só: lidar com questões de gênero e sexualidade de forma tão aberta e, sim, divertida, lá em 1975. Ele desafia convenções enquanto serve entretenimento de primeira qualidade.

A sequência de abertura é uma amostra do que vem pela frente. Uma boca carnuda, de um vermelho vivo e suculento, destaca-se sobre um fundo preto e entoa uma canção que cita várias pérolas do cinema, como “King Kong”, “O dia em que a terra parou”, “Tarântula”, “Flash Gordon” e “Plano 9 do espaço sideral”, entre outros. É algo sexy, provocativo. Não à toa tornou-se um ícone da cultura pop. A música, “Science Fiction, Double Feature”, é somente a primeira das muitas que formam um universo psicodélico, macabro e sexual. Todas compostas por Richard O’Brien, que também foi o responsável pelo musical do teatro e atua no filme como o mordomo Riff Raff.

Os reprimidos Brad e Janet vão confrontar seus desejos e passar por um processo de libertação. Jogo de aparências nunca mais… Foto: Divulgação

A trama que permeia todo o nonsense e a insanidade presentes é bem básica, com toda a sorte de incongruências e absurdos. Digamos que o roteiro seja mais referencial do que narrativamente coeso. É a proposta e funciona perfeitamente. Brad e Janet se empolgam com o casamento de amigos e resolvem noivar também. Namorados há tempos, eles fazem o tipo careta, certinhos e reprimidos sexualmente, e dão o passo mais previsível rumo a uma vida socialmente aceitável. Aliás, toda a sequência do pedido de casamento já revela em sua composição de cena o simbolismo mórbido do que o enlace representaria aos dois, com a inclusão de elementos como lápides e caixão.

Mas, antes, os dois partem para uma pequena viagem a fim de contar a novidade para um amigo. Porém, no meio do caminho, com direito a chuva e um pneu furado, havia um castelo… Lá, um cientista louco criou um ser com um único propósito: dar-lhe prazer. E a noite tenebrosa está só no começo. Um detalhe curioso: o castelo em questão foi bastante utilizado em filmes da produtora Hammer, especialista em clássicos do horror. Mais apropriado impossível.

A fragilidade quanto à premissa é totalmente arquitetada, pois a intenção é cultivar a paródia, investir na teatralidade e, por meio desses atributos, atacar a “moral e os bons costumes” do famoso “cidadão de bem”. E aqui entra a performance surreal e hipnotizante de Tim Curry, como o Dr. Frank-N-Furter. “Rocky Horror” é recheado de personagens bizarros e todos têm o seu momento de brilhar (Susan Sarandon especialmente), mas Curry sobressai, tem uma presença de tela tão imponente que Riff Raff, a governanta Magenta (dona dos lábios na cena de abertura) e todos os outros empalidecem. Irônico e sarcástico, ele incorpora o espírito do rock’n’roll em uma escala interplanetária. E de forma bastante fluida: joga com a virilidade e a feminilidade ao seu bel-prazer. Acredito que nem Mick Jagger, que se ofereceu para interpretar o personagem, conseguiria se sair tão bem.

Talvez o único momento que se aproxime do nível de divertimento e sensualidade do desempenho de Curry seja a coreografia (totalmente descoordenada e maravilhosa) da música Time Warp, uma “fantasia sonhadora”, um “salto da mente”, como diz a sua letra. É um número contagiante, libertador. E que, não por acaso, nos prepara para a entrada em cena de Frank-N-Furter, pois essa é a hora de nos despirmos de conceitos pré-estabelecidos.

Dali para frente, embarcaremos em uma viagem para uma terra distante de quaisquer resquícios de conservadorismo, repressão, comodismo ou covardia e, quem ainda os tiver, fará companhia a Brad e Janet no “pesadelo” em que se meteram. Mas, calma, pode ser que, assim como o nosso casal de protagonistas, vocês percebam que, afinal de contas, não era uma questão de sobrevivência, mas simplesmente de expandir a sua visão de mundo.

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