PATRÍCIA CAMPOS MELLO
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Muitas vezes, o historiador Moshe Rozen acorda com pesadelos no meio da noite, lembrando-se dos terroristas do Hamas que invadiram sua casa e metralharam sua mão. Ele se levanta e vai buscar um livro em sua biblioteca. Aí lembra que não há como fazer isso. Desde que o Hamas atacou o kibutz Nir Itzhak, em 7 de outubro do ano passado, Moshe, 72, e sua mulher, Diana, 73, nunca mais voltaram para casa.Eles vivem em um lar para idosos no centro de Israel, com ajuda do sistema social do governo e do próprio estabelecimento. Moshe já passou por três cirurgias tentando recuperar os movimentos da mão esquerda. “Nem sei o que sobrou da minha casa.”
Como Rozen, a grande maioria dos moradores dos locais atacados pelo Hamas há seis meses nunca mais voltou. Em Nir Yitzhak, que fica a 3 quilômetros de Gaza, viviam 600 pessoas. Seis foram mortas. Menos de 20 voltaram a viver lá.
Os kibutzim são comunidades originalmente agrícolas, que diversificaram suas atividades e foram essenciais para o povoamento do território israelense. O governo de Israel não forneceu números oficiais de mortos e sequestrados em cada um desses vilarejos.
Rozen e Diana estavam acostumados com a rotina de sirenes e de abrigos nas casas por causa dos foguetes lançados pela facção terrorista palestina. Mas ninguém estava preparado para algo como o 7 de Outubro -nem a polícia nem as ambulâncias, que nunca chegaram.
“Não sei quando, e se, vamos voltar para casa. Não basta reconstruir, precisamos ter segurança”, diz Rozen. “Nosso kibutz foi bastante destruído, mas não foi incendiado -outros viveram uma catástrofe muito maior.”
Uma das comunidades mais devastadas pelos terroristas do Hamas foi Nir Oz, onde 25% da população foi assassinada ou sequestrada. Eram 417 habitantes, dos quais 117 foram assassinados ou levados como reféns para Gaza, cuja fronteira fica a pouco mais de 2 km de distância. Cerca de 60% das casas do kibutz foram destruídas, e boa parte da infraestrutura, calcinada. Só não se tornou uma vila fantasma pela presença dos militares de Israel e das poucas pessoas que voltam para buscar pertences.
A argentina Silvia Cunio, 63, chegou a Nir Oz há 36 anos, com o marido e o filho mais velho. “Era o melhor lugar para criar meus filhos”, afirma. Seus quatro filhos, Lucas, Eitan, David e Ariel, cresceram no kibutz. David e Ariel tiveram suas casas queimadas e foram levados por terroristas do Hamas. David foi sequestrado com a mulher e as filhas gêmeas de 3 anos. Elas foram libertadas -ele não.
A última mensagem de WhatsApp que Silvia recebeu de Ariel dizia: “Entramos em um filme de terror”. “Estou destroçada por dentro. Não consigo nem cozinhar”, conta Silvia, que não pretende voltar para casa e vive agora na cidade de Kiryat Gat, em um prédio com outros refugiados do kibutz, custeados pelo governo. Há alguns também em lares de idosos, esperando seus parentes serem libertados.
No dia 6 de outubro, véspera dos atentados, Silvia reuniu 20 pessoas em sua casa, entre amigos e familiares. Daqueles 20, só sobraram 12. Sua sogra Esther, 90, diz que sobreviveu ao mencionar ser compatriota de Lionel Messi para os terroristas, que gostavam de futebol e a teriam poupado por isso.
Segundo Irit Lahav, porta-voz de Nir Oz, ainda há 37 moradores do kibutz sequestrados, entre eles um bebê, uma criança de 4 anos e idosos com mais de 80 anos.
Lahav afirma que vai levar mais de três anos até que as pessoas possam voltar a viver da mesma forma em Nir Oz. Cerca de 60% das construções foram destruídas, mas a maioria terá de ser demolida e refeita do zero, por causa das conexões de água e luz. No momento, a comunidade está selecionando arquitetos para planejar as obras.
Em Be’eri, outro dos kibutzim mais afetados, viviam 1.250 pessoas -100 foram mortas, e 11 sequestradas. Menos de cem voltaram, segundo o porta-voz da localidade, Yael Marcus. Um terço das casas foi destruído. Os sobreviventes foram deslocados para hotéis em vários locais do país, a maioria em torno do Mar Morto. “A maior parte não vai voltar para Be’eri no curto ou médio prazo”, diz Marcus.
Alguns habitantes começaram a retirar os destroços, mas a reconstrução ainda não começou. A escola continua fechada, assim como o comércio. Natacha Cohen, 52, é um dos poucos que retornaram. Ela vive no kibutz há 35 anos, com seus três filhos adultos e o marido. Sua melhor amiga, dois amigos próximos e dois colegas de trabalho foram mortos pelo Hamas. “Somos como uma grande família, todo mundo se conhece, ajudamos a educar os filhos uns dos outros, são três gerações morando aqui. A gente precisa se reerguer, ser forte”, diz Natacha, que veio da África do Sul.
Os atentados de 7 de outubro, além de matar cerca de 1200 pessoas, foram um golpe significativo contra o sonho da vida nos kibutzim. Há cerca de 125 mil pessoas vivendo nessas comunidades pequenas, cuja população em sua maioria varia de 100 a 1.000 pessoas. Muitos estão nesses lugares há mais de 50 anos. Chegaram com a esperança de uma vida mais justa, em um sistema no qual se dividiam os frutos do trabalho, as terras eram cultivadas em conjunto e os alimentos, compartilhados. Hoje, os kibutzim abraçaram o capitalismo, mas conservam parte dos ideais.
“Vir para o kibutz era como chegar ao Paraíso. Vínhamos de uma ditadura para uma democracia direta, saíamos de um lugar de repressão para um de libertação, saindo da desigualdade para um em que tudo estava aberto”, diz Dario Teitelbaum, presidente da União Mundial Meretz, entidade ligada ao homônimo partido sionista de esquerda.
Teitelbaum fugiu da Argentina em pleno regime militar, em 1977, para viver no kibutz de Gvulot –que não sofreu invasão terrestre, mas dez de seus moradores foram sequestrados. “[Os atentados] foram uma tentativa de sabotar toda a possibilidade de acordo, de solução, tanto para eles como para nós, mas foram, sobretudo, uma nova categoria do mal.”