COLUNA

O indecifrável David Lynch

Com sua obra inquietante e indecifrável, provocou reflexões e subverteu a violência como estética cinematográfica

O indecifrável David Lynch

Aos poucos vamos nos despedindo daqueles que construíram nossas percepções culturais por diversos motivos e diferentes maneiras nas últimas décadas. David Lynch foi um deles. Com sua obra inquietante e indecifrável, provocou reflexões, atirou na cara da burguesia a própria hipocrisia e subverteu a violência como estética cinematográfica, potencializando o surrealismo como movimento e linguagem.

Lembro que minhas primeiras impressões de Twin Peaks (ainda na época da transmissão na Rede Globo) não foram das melhores, assim como de Veludo Azul. Era esquisito e rebuscado demais para uma mente jovem, ainda em construção. Mas essa má impressão inicial foi se diluindo com o tempo e após assistir obras mais “palatáveis”, como “Homem Elefante”, “Corações Selvagens” e “Duna”.

Revisitando “Twin Peaks” como calma e seguindo a ordem cronológica (incluindo os filmes e a terceira temporada), me apaixonei por todas as idiossincrasias e semiótica presentes ali. Tanto que tatuei símbolos da série no corpo. Era algo novo e inovador na televisão americana, acostumada a séries procedurais e enlatados juvenis. A história de um assassinato que mobiliza uma cidade com os tipos mais esquisitos possíveis reunia todo tipo de enredos reais, culturais e metafísicos, com a trilha sonora arrebatadora de Angelo Badalamenti. A partir da segunda temporada, com a revelação do assassino, a série tomou proporções cada vez mais surreais, sustentada apenas pelo livre olhar do seu criador sobre o mundo que o cerca.

Lynch fez poucas concessões ao cinemão americano. Preferia manter seu próprio círculo de colaboradores, em frente e por trás das câmeras. Seu cinema era para se sentir e não fazer sentido. Era para especular, decantar dentro da mente por dias, meses e anos. Era feito para chocar e emocionar, dentro de algumas proporções meticulosamente graduadas. Um apaixonado pelo cinema, pela vida e pela morte, não afeito a cultos e celebrações, nem celebridades. Tratava seus atores iguais, sejam grandes estrelas como David Bowie ou atores iniciantes.

Lynch nunca gostou de explicar nada, como muitos cineastas fazem hoje em dia. O que está na tela basta por si só. Nada faz sentido e tudo vai passar. É inacreditável que a maior parte da sua obra não esteja disponível nos streamings, sendo possível alugar algumas no Prime Vídeo. O único com alguns filmes em catálogo é a Darkflix, plataforma nacional voltada para o cinema de horror e fantástico. Vale também buscar pelos torrents e stremios da internet. O próprio Lynch aprovaria isso.