A condição humana tratada de forma extremamente cética e pessimista em que quaisquer tentativas de se exercer a razão e a objetividade são corrompidas ou até mesmo aniquiladas pelo aprofundamento das relações entre as pessoas. Este pode ser considerado o tema central de “O homem que caiu na Terra”, filme de Nicolas Roeg, de 1976, baseado no livro de Walter Tevis. Nele, um alienígena tem a missão de levar água para o seu planeta que está em vias de extinção. Ele usa tecnologia avançada para enriquecer com patentes e construir uma nave espacial para transportar a água. Mas seus planos dão terrivelmente errado.
É um filme poderoso imageticamente. Em especial pela figura hipnótica de David Bowie como o protagonista Thomas Jerome Newton. E Bowie já possuía essa aura de “visitante de outro planeta”. Não custa lembrar que, quatro anos antes, a persona andrógina e provocante de Ziggy Stardust se apossou do corpo do cantor e se revelou ao mundo com o álbum “The rise and fall of Ziggy Stardust and the Spiders from Mars”, um dos mais influentes da história do rock’n’roll.
Apenas para contextualizar, Ziggy era um messias decadente, que refletia com exatidão a década de 70 e todas as suas agruras, do anticlímax espacial até o fim dos Beatles. O sonho havia acabado. A melancolia tomava conta de tudo. Bowie incorporou o personagem, levando-o às últimas consequências, como nunca alguém ousou fazer, seja no conceito visual – era o ápice do glam rock – com sua aparência moderna e apocalíptica; seja na sonoridade intensa.
Não poderia haver, portanto, melhor escolha para o papel do alienígena que, em princípio, mergulhado na misantropia e em sua missão, pouco a pouco sucumbe aos vícios do álcool, sexo e televisão, deixando-se dominar por um vazio existencial, um sentimento de não pertencimento, de vulnerabilidade. Muito longe de casa; um visitante jamais bem-vindo. Contudo, o niilismo que rege os seus dias o impede de sequer guardar mágoa pelo sofrimento que lhe é causado na Terra – físico ou psicológico. “Faríamos o mesmo a você se você fosse ao nosso planeta”, diz.
Embora a montagem abuse das elipses, com grandes saltos temporais, a opção por essa estética, que poderia deixar tudo bem confuso, não faz a lógica narrativa se perder, pelo contrário. É perceptível a transformação paulatina de Newton, que causa impacto no espectador pelo contraste. Por exemplo, se o protagonista restringia o seu contato humano ao mínimo possível com o advogado da empresa, Oliver Farnsworth, agora ele chega a praticar um jogo emocional trágico e digno de pena com a parceira Mary-Lou. A cena de sexo envolvendo um revólver é teatralmente selvagem nesse sentido, sem resquícios da ingenuidade vista anteriormente.
“O homem que caiu na Terra”, portanto, como já deu para notar, é um filme contemplativo tematicamente. Mas, assim como seus personagens, traz consigo uma contradição em relação ao visual, já que não aposta em seu caráter onírico, deixando de lado cores frias que poderiam remeter a um estado de sonho, talvez mais apropriado a uma ficção científica mais convencional – que ele prova que não é. Ele é quente, quase uma rima perfeita com as madeixas alaranjadas de Bowie, fazendo com que a sua complexidade exploda na tela e reverbere ainda mais na mente do espectador. Por fim, trata-se de um filme cujo conceito você pode até não comprar, mas que definitivamente lhe entrega algo diferente do usual.
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- Mubi
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