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O conto de faroeste de Pedro Almodóvar

Existe uma boa razão para que o novo filme de Pedro Almodóvar, o curta-metragem “Estranha forma de vida”, tome emprestado o nome do fado de Amália Rodrigues para se intitular. “Coração independente, coração que não comando. Vives perdido entre a gente, teimosamente sangrando…”. Este trecho da canção, na voz de Caetano Veloso, traduz perfeitamente o tom da narrativa, um faroeste que carrega consigo todo o melodrama e demais características cinematográficas peculiares do cineasta espanhol, resultando em um bem-vindo exercício de criatividade dentro de um gênero que está nas bases fundadoras do cinema, desde “O grande roubo do trem”, de 1903, e que se revigora de tempos em tempos.

Almodóvar não faz um filme perfeito ou revolucionário, vejam bem – ele peca um pouco no ritmo, por exemplo, mesmo com a curta duração – 31 minutos -, às vezes apressado e, outras, insuficiente; e o tema, que traz o erotismo e o desejo entre dois caubóis, também já foi retratado anteriormente, mesmo que de maneira velada. “Ataque dos cães”, de Jane Campion, talvez tenha sido o exemplar mais recente. Mas o cineasta acrescenta elementos que, com certeza, o tornam uma experiência única. Não se engane, pois mesmo que o filme pareça fugir das convenções do gênero, não o tornando identificável logo de cara, os clássicos duelos estão ali, escondidos em uma troca de olhares, intenções e até mesmo da forma como o cineasta utiliza a câmera, subvertendo a expectativa e substituindo os horizontes e planos abertos por closes e detalhes. É um faroeste, sim, intimista e melodramático.

Na trama, Silva, fazendeiro interpretado por Pedro Pascal, atravessa o deserto para encontrar Jake, personagem de Ethan Hawke, o xerife de Bitter Creek (riacho amargo). Eles tiveram um envolvimento romântico na juventude, quando eram pistoleiros, mas estão há 25 anos sem se ver. Um reencontro repleto de tensão sexual e ressentimentos, marcado pela diferença de personalidade entre os protagonistas. A passionalidade de Silva e o distanciamento racional de Jake são as armas apresentadas por eles na primeira metade do filme.

O cineasta espanhol deixa sua marca em um dos gêneros fundadores do cinema – Foto: Divulgação

Nesse aspecto, a cena do jantar é um primor pela construção bem calculada do “suspense” motivado por esse jogo de sedução imposto por Silva, que está ali nitidamente com um objetivo oculto, e faz com que Jake seja “alvejado” e caia em seus braços para uma noite de paixão, da qual se arrepende na manhã seguinte. Pascal e Hawke, principalmente este último, conseguem demonstrar brilhantemente o conflito de seus personagens, que transpiram melancolia e tristeza, consequência das suas memórias e desilusões, em contraste com o desejo latente.

Por falar em memória, o vislumbre que temos do auge dessa paixão vivida pelos ex-pistoleiros é puro Almodóvar, nas cores vivas, na sensualidade, no exagero. E funciona melhor ainda como forma de potencializar o último ato, quando, paradoxalmente, o filme entra de cabeça no gênero, pois agora eles já se desnudaram de todas as alegorias e estão, literalmente, com as armas nas mãos para selar os seus destinos no deserto de Tabernas, na Andaluzia, onde o grande Sergio Leone filmou os seus western spaghetti. Mais emblemático impossível para completar de vez essa interessante fusão de estilos, com Almodóvar dando a “palavra final”, retomando no apagar das luzes a veia irônica sempre presente em suas obras.

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