MORTO HÁ 500 ANOS

Vasco da Gama: mito em Portugal, mas com biografia pouco conhecida

Descubra mais sobre Vasco da Gama, o navegador português que abriu caminho para a rota marítima das Índias há 500 anos.

Muito se escreveu sobre a influência do navegador, mas bem menos sobre sua vida.
Muito se escreveu sobre a influência do navegador, mas bem menos sobre sua vida.

Vasco da Gama é nome de uma ponte de 17,2 quilômetros sobre o rio Tejo, a mais extensa da União Europeia, e de um conjunto arquitetônico desenhado pelo espanhol Santiago Calatrava. Também é nome de um clube de futebol em sua cidade natal, a minúscula Sines, que não se compara em torcida e prestígio ao congênere brasileiro. Na Índia, Vasco da Gama batiza uma cidade, uma estrada de ferro e um arco do triunfo no estado de Goa.

Morto há 500 anos, em 24 de dezembro de 1524, ele foi o navegador português que pela primeira vez ligou seu país às Índias por via marítima, em 1498, numa viagem que transformou a política, a economia, a cultura e a compreensão do mundo em seu tempo.

Vários eventos marcam o quinto centenário da morte de Vasco da Gama em Portugal, onde é herói nacional –segundo pesquisa recente, mais popular que o Infante Dom Henrique (1394-1460), iniciador da expansão marítima, ou o poeta Luís de Camões (1524?-1580). Já houve cerimônia no Mosteiro dos Jerónimos, onde se encontra seu túmulo, e um concerto sinfônico com obras evocando a famosa viagem. A partir de janeiro haverá conferências em várias cidades destinadas a discutir sua biografia.

Muito se escreveu sobre a influência do navegador, mas bem menos sobre sua vida. A maior parte dos relatos é fantasiosa e ajudou a construir um mito. Vasco da Gama é personagem central de “Os Lusíadas”. No poema, ele convive com deuses da mitologia grega e um gigante fictício, Adamastor, que aterrorizava os navegantes ao afundar navios no Atlântico. No século 19, em ópera do alemão Giacomo Meyerbeer (1791-1864), Vasco foi um personagem galante que cantava com voz de tenor. No libreto de “A Africana”, uma princesa indiana e uma nobre portuguesa disputam sua atenção. Pouco encenada hoje, a peça foi em sua época sucesso estrondoso em Paris, com mais de 200 apresentações.

Sabe-se algo da vida real e da personalidade de Vasco da Gama a partir de relatos das três viagens que empreendeu ao sul da Ásia, em 1497/1498, 1502 e 1524. Morreu pouco após concluir a terceira e última, já com o posto de vice-rei das Índias, provavelmente em decorrência de malária. Emerge desses textos um homem determinado, corajoso, disciplinado, cumpridor de ordens — e também violento e implacável contra governantes e povos de culturas e religiões diferentes da sua.

Quem foi Vasco da Gama?
Vasco da Gama nasceu provavelmente em 1469 em Sines, cidadezinha próxima de Setúbal e de Lisboa, e morreu em 1524 em Cochim, onde hoje fica a província indiana de Kerala. Era filho de um nobre português e aparentemente caiu nas graças do rei D. João 2º (1455-1495) ao confiscar mercadorias de navios com bandeira da França, como retaliação contra o roubo de uma carga de ouro por parte de corsários franceses. Por causa disso foi condecorado com a Ordem de Santiago. Seu prestígio fez com que o monarca seguinte, D. Manuel 1º (1469-1521), o escolhesse para a viagem pioneira ao sul asiático.

O comércio entre Europa e Ásia já existia desde o Império Romano. As especiarias do Oriente vinham por terra e mar, em rotas controladas em sua maioria por muçulmanos, na Ásia, e pela República de Veneza, quando chegavam à Europa pelo Mar Mediterrâneo. Era uma operação dispendiosa, com muitos atravessadores no caminho e sem capacidade de transportar grandes quantidades.

A descoberta do caminho marítimo para as Índias revolucionou esse comércio, pois aumentou a quantidade e a variedade de artigos negociados, segundo o historiador português João Paulo Oliveira e Costa, da Universidade Nova de Lisboa, criador de um curso sobre Vasco da Gama e Luís de Camões. “Passaram a vir para a Europa não apenas especiarias das Índias, mas também porcelana da China, tapetes, joias, chá e até animais que não eram conhecidos na Europa”, diz Oliveira e Costa à Folha.

O principal documento da viagem pioneira é o relato de um dos integrantes da esquadra de quatro navios que zarpou de Belém, às margens do Tejo, em 8 de julho de 1497. O diário do autor anônimo –provavelmente um tripulante de nome Álvaro Velho– mostra a dificuldade de navegar ao sul do Equador, onde constelações como a Ursa Maior, que guiavam os cartógrafos da época, deixavam de ser visíveis. Ele narra várias paradas na costa africana, em que os portugueses reabasteciam seus navios e interagiam com nações locais. Numa das últimas, Vasco da Gama toma a sábia decisão de contratar um navegador com experiência no Índico, oceano desconhecido de seus capitães e dele próprio.

“Ao chegar à Índia, os portugueses se depararam com uma sociedade acostumada a fazer comércio com europeus em troca de ouro, ao contrário dos africanos, com quem estavam habituados a fazer trocas e para quem o ouro não valia muita coisa”, afirma Oliveira e Costa. Ao aportar na cidade de Calicute, Vasco da Gama tentou negociar com o governante local. Os portugueses vinham “em busca de cristãos e especiarias”, na frase famosa de um dos tripulantes da esquadra. Os integrantes da expedição acreditavam que houvesse cristãos na Índia. Acharam que os templos hindus fossem igrejas ocidentais, em que os santos, por alguma razão, tinham várias pernas e braços.

Nada foi fácil, no entanto. Vasco da Gama voltou a Portugal, o rei o cobriu de honrarias e mandou Pedro Álvares Cabral (1467-1520) –que no caminho passou pelo Brasil– para concluir a missão diplomática. Cabral estabeleceu uma feitoria em Calicute, que acabou destruída num conflito com o soberano local. Em 1502, D. Manuel 1º enviou Vasco novamente e deu ao nobre carta branca para guerrear se fosse preciso e restabelecer o domínio português no local. Foi nessa segunda viagem, muito mais documentada que a primeira, que o navegador mostrou sua face brutal.

Alegando vingança contra a morte de portugueses na destruição da feitoria, Vasco da Gama aprisionou e mandou queimar o navio Miri, com muçulmanos que voltavam de uma peregrinação a Meca. A imagem de cerca de 300 civis inocentes ardendo no fogo, entre eles várias mulheres que erguiam suas crianças implorando por clemência, horrorizou os tripulantes da esquadra que escreveram relatos a respeito. “Hei-de recordar todos os dias da minha vida”, anotou um deles, Tomé Lopes. A estratégia de Vasco ao retornar ao sul da Ásia nessa segunda viagem foi fazer alianças com reinos que mantinham contenciosos com Calicute. A chegada dos portugueses, assim, acirrou os conflitos na região, provocando guerras e mortes.

Um conto do escritor indiano Saradindu Bandyopadhyay (1899-1970), publicado nos anos 1930 e inspirado no episódio do Miri, dá a medida de como Vasco da Gama é visto em parte do continente asiático. Na ficção, o navegador português chega às Índias e desrespeita normas éticas e códigos de conduta locais. É batido numa luta com um mercador muçulmano, mas este poupa-lhe a vida. Passam-se anos, e o mercador decide fazer uma peregrinação a Meca. Na volta, seu navio encontra o de Vasco da Gama. Os dois lutam novamente, e desta vez o português é o vencedor. O mercador pede que sua vida seja poupada, em retribuição ao que ocorrera anos antes. O fictício Vasco, no entanto, é impiedoso e afunda-lhe o navio, matando-o.

A narrativa contrasta com o tom épico com o qual Camões retrata o herói português. O conto, intitulado “Crepúsculo Sangrento”, é relembrado em um dos mais bem documentados livros sobre Vasco da Gama, de autoria do indiano Sanjay Subrahmanyam. O historiador, que dá aulas na Califórnia, tem uma visão mais crítica sobre o navegador, embora reconheça sua coragem e importância no contexto da época. .

O livro termina com uma frase de Baruch Spinoza (1632-1677), filósofo holandês de família portuguesa: “Das ações humanas tratei de não rir, de não chorar, de não as detestar, mas de as compreender”. Entender a vida e as viagens de Vasco da Gama é uma das formas de conhecer a gênese do mundo globalizado.

JOÃO GABRIEL DE LIMA/ISBOA, PORTUGAL (FOLHAPRESS)