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O preso de hoje é seu vizinho de amanhã. Este é o mote do sistema prisional alemão, que se baseia na reabilitação social de pessoas que cometem crimes. A ideia, repetida à exaustão por administradores de unidades prisionais e por profissionais da área, acaba refletindo prisões que passam longe de masmorras superlotadas, mas que ainda são passíveis de críticas.
Com uma porta de metal que dá direto para a calçada, um prédio baixo, de cor creme, com grades nas janelas grandes fica no meio do bairro de Lichtenberg, em Berlim. Poderia ser de tudo: uma escola, um prédio residencial, um escritório. Mas é um dos quatro presídios femininos da cidade de 3,6 milhões de habitantes.
A vizinhança tem ar de normalidade. O presídio fica a poucos quarteirões da estação de metrô Magdalenenstrasse e perto de um dos pontos turísticos da cidade, um memorial dos tempos de Guerra Fria de uma antiga prisão da Stasi, a polícia secreta da Alemanha Oriental, à qual o bairro pertencia.
No dia da visita da Folha à instituição, uma mulher com uma mala abraçava um homem na porta antes de entrar no presídio. Quando se separaram, o homem seguiu pela rua, no sentido da estação de metrô. A diretora da unidade, Silvia Rodrigues, que é filha de portugueses, afirmou se tratar de uma mulher que estava se entregando.
Lichtenberg é um presídio que recebe mulheres cis e trans adultas e adolescentes em regimes aberto, semiaberto e fechado. Cada mulher tem seu quarto com banheiro e sistema de mídia. Segundo Rodrigues, só presídios femininos funcionam assim, mas não todos. Aqueles que têm banheiros e quartos compartilhados estão sujeitos a normas de lotação.
As presas trabalham e, com o dinheiro que ganham, podem pagar por melhorias nos quartos, como frigobares, ou por produtos como doces e cosméticos. A ideia, segundo os dirigentes, é que o ambiente não seja uma punição adicional àquela já imposta pelo tempo em que as indiciadas vivem em privação de liberdade.
O sistema, porém, é alvo de criticas. Segundo Franziska Duda, uma integrante da organização antipunitivista Justice Collective, a chance de reincidir aumenta se a pessoa já foi presa. Além disso, ela afirma que um número alto de alemães são presos anualmente por não pagar multas -65 mil pessoas, segundo as estimativas da ONG- e que tais punições se concentram em delitos como roubar e não pagar o transporte público.
O gasto com detentos chama a atenção. Segundo os dirigentes do presídio, estima-se que cada detenta custe ao sistema cerca de € 190 (R$ 1.100) por dia.
Três presas que conversaram com a reportagem afirmam que há pouco do que se reclamar, fora o tédio. Elas afirmam que não há muita violência entre as internas, mas existe muita autoagressão. Uma delas reclamou da falta de opções de terapia de substituição no caso das dependentes químicas. Segundo Rodrigues, as substâncias disponíveis são metadona, levometadona, buprenorfina e Retardiertes Morphin.
Lichtenberg concentra as encarceradas por tráfico e porte de drogas -em Berlim, a heroína é a principal droga em circulação. A unidade lida com a entrada constante de drogas. Funcionários afirmam que é impossível barrar totalmente a circulação de substâncias ilícitas ali dentro. Mas uma iniciativa pioneira de distribuição de seringas esterilizadas visa à redução de transmissão de doenças como hepatite e HIV. Este é o único presídio alemão com uma política do tipo, mas, segundo Rodrigues, existem iniciativas similares na Suíça e na Espanha.
Fora dos muros das unidades, existem pontos de distribuição de agulhas limpas em lugares estratégicos de várias cidades alemãs. A iniciativa começou em Frankfurt, nos anos 1990, mas não chegou aos centros de detenção.
Ali, a geografia dos presídios locais é diferente da de Berlim. Além de não serem tão integrados ao resto da cidade, eles não têm uma arquitetura que se misture à da vizinhança. No presídio Frankfurt 3, a fachada parecia a de presídios que se veem em filmes: muros altos de concreto cinza, com arame farpado.
Dentro, suítes privativas eram decoradas com itens pessoais de cada detenta. Uma das unidades visitadas tinha um frigobar, flores na estante, algumas fotos na parede e um top pendurado. Na TV, passava um episódio da série “Friends”. O espelho no banheiro era falso, só uma superfície reflexiva, para que não se tornasse uma arma.
Já em um quarto de onde saiu uma mulher mais velha podiam-se ver paredes pintadas de lilás, uma personalização feita por ela mesma. Nas paredes, fotos de gatos e de um bebê. A detenta mantinha na cela um tricô em linha preta, um tapetinho e uma toalhinha roxos e um dicionário de russo.
Segundo os dirigentes da unidade, a Guerra da Ucrânia criou a necessidade de separar as presas russas das ucranianas. Em Berlim, as detentas não alemãs são 38% do total. A administração de Frankfurt não informou dados.
Foi nessa unidade de Frankfurt que ficaram presas as brasileiras Kátyna Baía e Jeanne Paollini por cerca de um mês após autoridades alemãs encontraram cocaína em suas bagagens, em março de 2023. O casal teve as malas trocadas durante uma conexão em Guarulhos (SP) por uma quadrilha. À época, elas reclamaram das más condições de acomodação e higiene.
No Frankfurt 3, existem outros dois tipos de acomodação: as celas destinadas às presas por longa duração e àquelas que cumprem pena perpétua, de um lado, e os apartamentos para mães de crianças pequenas, de até 3 anos, de outro.
No primeiro caso, elas podem circular fora da cela o dia todo em lugares como a cozinha coletiva. A unidade é mais espaçosa, com uma sala além do quarto e dois banheiros.
No segundo caso, em um prédio separado e dedicado apenas às mulheres com filhos, existem espaços recreativos para as crianças, além de carrinhos, trocadores e berços. Lá, as guardas não usam uniforme, e a luz é baixa. O cenário lúdico e silencioso convive com elementos duros do cárcere. Os muros são pintados com desenhos de coelhinhos, elefantinhos e flores, mas continuam com arame farpado e câmeras hostis.
A repórter viajou a convite do Consulado Geral da Alemanha em São Paulo.