As’ad foi uma das primeiras jornalistas mulheres da TV Palestina, estabelecida em 1994 após os Acordos de Oslo. Vinda de uma família de refugiados de Bayt Mahsir, vilarejo despopulado após 1948 e transformado no assentamento israelense Beit Mier, cobriu as últimas três décadas de conflito. Foi presa duas vezes. A primeira, no seu aniversário de 13 anos em 1989, por protestar na Primeira Intifada. Ficou três anos sob custódia de Israel, sem ir à escola e com contato limitado com os pais. Depois, como jornalista. Desde 2023, assistiu à morte de 70 parentes do marido em Gaza. “O principal desafio é permanecer vivo”, conta ao GLOBO.
Qual é a situação dos jornalistas palestinos em Gaza?
O que os nossos colegas em Gaza, e até nós na Cisjordânia, enfrentamos não é novo. Desde o primeiro dia da ocupação, somos atacados diretamente por Israel, com jornalistas sendo agredidos ou humilhados em postos de controle, ou tendo seus escritórios invadidos e equipamentos, demolidos. Mas, depois de 7 de outubro, há uma grande escalada. Agora, em Gaza, morre quase um jornalista por dia. O principal desafio é permanecer vivo: até agora, 130 já perderam suas vidas. Já são 84 escritórios bombardeados, um da AFP, um da Reuters e de canais de TV árabes e locais. Tivemos 100 jornalistas presos, e 40 ainda estão na prisão ou em detenção administrativa, sem qualquer tribunal nem permissão para receberem o sindicato ou seus advogados. Dois colegas estão desaparecidos, e vários recebem ameaças. Outros foram feridos e perderam suas vidas porque Israel não permitiu que saíssem de Gaza. Muitos estão deslocados, alguns pela quinta ou sexta vez. Eles vivem em tendas feitas à mão, com algumas madeiras e nylon. Carecem do básico para viver, como comida, água, cobertores, internet, eletricidade e gasolina. Movem-se a pé ou em carroças puxadas por burros. Estão traumatizados.
O que significa ser um jornalista palestino cobrindo esta guerra?
Significa que você é um alvo. Que Israel pensa e propaga que tem o direito de matá-lo. Que você pode ser preso. Que tudo ao seu redor pode ser destruído. Que você pode perder sua família e colegas a qualquer momento. Que cobrir os fatos pode tirar sua vida. Que você nem mesmo tem a possibilidade de sair ou se mover. Jornalistas estrangeiros têm direitos. Nós, não. Mesmo que isso signifique que você será totalmente desumanizado. Recentemente, eu e outros jornalistas fomos atacados por soldados num trecho de fronteira simplesmente porque falamos árabe. Na Cisjordânia, o problema não são só os soldados, mas também os colonos, que tornam cada vez mais difícil nos locomovermos até Jerusalém. Eu uso meu capacete e meu colete até no carro, mesmo que não haja bombardeios. Porque estou aterrorizada. Nunca achei que chegaríamos a este ponto.
O conflito leva a imprensa palestina a querer fazer mais ou a abandonar a profissão?
A maioria não parou, e eles são muito corajosos por isso. Eu mesma já penso duas vezes antes de ir a campo. Me pergunto se vale a pena. Sou uma refugiada, meu vilarejo agora é um assentamento israelense. Minha mãe e minha avó diziam que, se tivéssemos redes sociais na época, a Nakba [êxodo palestino desencadeado pela guerra árabe-israelense de 1948] não teria acontecido. As pessoas teriam visto [o que aconteceu nos territórios palestinos] e impedido. Eu sempre penso nisso. Fui ao túmulo da minha mãe há duas semanas?. (chora) e lhe disse: “As pessoas já viram tudo e não impediram nada.”
Os jornalistas palestinos acharam que, se cobrissem os fatos [desde 7 de outubro], ganhariam aliados no exterior. Porque contariam histórias de ser humano para ser humano. Mas isso não aconteceu. Quem era aliado, permaneceu. Os outros não mudaram de posição. Não pedimos que ninguém fique ao lado da Palestina, mas do profissionalismo, dos direitos humanos e da lei internacional.
A senhora viveu e cobriu 30 anos de conflito. Já teve esperança de uma solução?
Não. Eu queria ver uma luz, mas nunca a vi. Quando eu fui ao ar pela primeira vez para desejar “uma boa noite da TV Palestina”, foi um momento bom, na verdade? Eu chorei. Porque dizer que há uma TV Palestina significa que há uma Palestina. E isso foi um pouco de esperança. Eu pertenço a uma geração que estava na prisão aos 13 anos por protestar contra os assentamentos em Jerusalém. Depois, quando Oslo aconteceu, eu fui contra. Não porque eu não quisesse viver em paz com os israelenses. Mas eu não achava justo que meu vilarejo fosse tomado e eu tivesse que viver num cantão da Cisjordânia com postos de controle, um muro e sem saída. A Organização para a Libertação da Palestina (OLP) disse que Israel tem o direito de existir, mas Israel não disse o mesmo sobre a Palestina. Em 1998, fui presa de novo, entrevistando [o líder político palestino] Faisal Husseini e apanhei brutalmente. Me chamaram de mentirosa e me acusaram de fabricar [notícias]. Em 2000, eu estava lá quando [o político israelense Ariel] Sharon entrou na Mesquita de Al-aqsa [o que desencadeou a Segunda Intifada]. Nós [jornalistas] fomos alvo de tiros e humilhados. A mentalidade da ocupação israelense nunca mudou, mesmo com a criação da Autoridade Nacional Palestina. Aonde isso vai levar nos próximos 30 anos? Hoje, vejo Israel indo mais e mais em direção ao extremismo. Mas nós, palestinos, estamos lá. Eles têm que encarar isso.
Acha que a atenção do mundo para Gaza se esvanecerá, como na Síria e na Ucrânia?
Sim. Temo que este se torne o normal. E que a morte vire a norma.