ARTIGO

Deep Seek: a superioridade tecnológica do socialismo sobre o capitalismo

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Matheus Colares do Nascimento

O DeepSeek foi desenvolvido por uma empresa de capital privado, podendo levar falsamente a creditar o seu sucesso à forma de propriedade de que surgiu, ao livre mercado e à ausência da mão controladora do Estado Chinês sobre a empresa responsável, a High-Flyer. Essa, porém, é uma visão superficial do processo de industrialização e inovação tecnológica na china por trás do qual o Estado interfere diretamente a partir do desenvolvimento de refinadas técnicas institucionais.

            A High-Flyer é a empresa de fundos de cobertura responsável por criar a Inteligência Artificial (IA) DeepSeek. A empresa inicialmente atuava no setor financeiro com cruzamento de dados do mercado financeiro para a identificação de padrões de flutuação no mercado financeiro, porém. Em 2023, porém, ela passa focar exclusivamente no desenvolvimento de IAs, após restrições governamentais sobre esse operações de investimento automatizado[i].

            Esse histórico da empresa pode sugerir à primeira vista que o desenvolvimento tecnológico surge como subproduto do funcionamento livre propriedade privada unicamente sob a mão invisível do mercado. Afinal, se a propriedade pública dos meios de produção, suposta condição necessária para o socialismo, fosse realmente superior à propriedade privada sob a lei de mercado, a Deep Seek deveria ter vindo então de uma   empresa 100% estatal. Essa, porém, é uma forma simplista de entender a ação do estado chinês na economia a partir de refinadas inovações político-institucionais que permitem meios diretos e indiretos de intervenção na realidade econômica sob a lei do valor (a lei fundamental do capitalismo de busca pela acumulação do valor, lucro).

No caso da China em especial, isso se dá com criação dos Grandes Conglomerados de Empresas Estatais (GCEE[MC1] ) que inauguram uma nova de forma do gerenciamento de empresas pelo Estado. É nesse contexto que o Deep Seek se insere, aliás, a indústria de chips, à qual pertence é, na verdade, o exemplo perfeito disso.

            O processo de formação dos GCEE tem origem nas grandes reformas sobre de formas de propriedade e na flexibilização econômica que tiveram lugar na China nos anos de 1978. Deu-se início então a um longo processo de transformação da composição industrial chinesa que só se consolida em 1994. Até 1990, 70% dos trabalhadores industriais do país ainda eram empregados por empresas estatais, porém, esse contingente industrial respondia apenas por apenas um terço do ganho industrial em comparação com outras formas de propriedade já operantes na China[ii]. A partir de 1994, a China opta por uma política de chatching up da sua produção industrial e tecnológica estatal. É o fim do Soft Budget Constraint onde o subsídio a empresas estatais passa um significativo ajuste nos seus critérios de financiamento, visando a promover escala para as suas principais empresas. Alguns desses critérios incluem, a redução na disponibilidade de crédito e a limitação da área de atuação das empresas estatais[iii].

Com isso, priorizou-se o desenvolvimento da eficiência das empresas estatais em um ambiente de concorrência “mais franca” em detrimento da sua capacidade de prover serviços sociais básicos em um ambiente de maior controle econômico do Estado sobre a economia. O resultado disso foi a falência de mais de 96 mil pequenas e médias empresas ancilares. Daí surgiram empresas monopolísticas, os GCEE, que ao tomarem o lugar destas empresas menores, ganham em escala para atingir a eficiência desejada. Ademais, os GCEE também deixaram de ser empresas integralmente estatais para se tornarem empresas de capital misto (186- 7). Essas medidas, consideradas isoladamente, parecem medidas tipicamente neoliberais, não só o Estado reduziu o subsídio às empresas, mas ainda as “privatizou” em parte.

No entanto, com isso o planejamento central do governo da China nunca deixou de controlar econômica e politicamente estas empresas. Membros do alto escalão do governo chinês integram os conselhos dessas empresas. Essa visão, portanto, se equivoca ao não entender que houve na verdade uma mudança na forma institucional de controle da estrutura da propriedade. Ao invés da propriedade integralmente pública, criou-se a Sasac (na sigla em inglês, Comissão de Administração dos Ativos do Estado) que leva o controle proprietário para o âmbito das finanças, onde o Estado passa a controlar as empresas por ser detentor de parte significativa dos seus passivos.

Ademais, também descaracteriza a ideia de um movimento neoliberal o fato de que o desenvolvimento destes conglomerados inicia um novo ciclo de acumulação que, portanto, é catapultado pelo Estado. Como escreveu Lênin, a oferta de crédito controla a produção industrial, portanto o domínio do setor financeiro permite o domínio do setor industrial[iv]. O domínio financeiro, por sua vez, constitui-se em um grande conglomerado ao monopolizar finanças e produção. Isso permite impor ao mercado a logica das relações, ao invés da lógica da livre concorrência (se é que ela já existiu). No caso do Socialismo Chinês, a criação dos GCEE permitiu a imposição sobre o mercado das SUAS relações, isto é, dos seus objetivos políticos estratégicos. Nesse sentido, o controle político da base de reprodução material da realidade a partir do controle dos GCEE permitiu o uso do monopólio para operar uma redistribuição de escala que trouxe junto consigo múltiplas pequenas e médias empresas, isto é, “um setor privado não-concorrente ao estatal”[v].

A Deep Seek é fruto desse processo na medida em que essa nova forma de controle político da dinâmica econômica permitiu redirecionar a área de atuação dos GCEE para áreas estratégicas sendo uma delas a de tecnologia. A Deep Seek é uma dessas empresas auxiliares; ela nasce, assim, indiretamente a partir de um esforço estatal de base que estrutura setores produtivos.

Embora indireto, o papel do Estado fica claro nesse processo se considerarmos aspectos característicos do setor de tecnologia: ele não só pressupõe já um dado grau de desenvolvimento de outros setores, mas também a sua ampla difusão na estrutura produtiva da sociedade. Isto é, pressupõe um “empilhamento de tecnologias que guardam relações técnicas necessárias”[vi]. Exemplos dessas tecnologias são as da comunicação e computação. Para as tecnologias de inteligência artificial avançarem, portanto, há a necessidade prévia da digitalização e conectividade da sociedade. O chamado Big Data é nada mais que o banco de dados, originado da combinação do setor de comunicação, a partir da criação de nuvens e tecnologias 5G que carreguem dados, e do setor da computação, a partir da produção de chips que emitem esses dados. Há, portanto, a necessidade de toda uma infra-estrutura que possibilite a operacionalização dos modelos de IA.

É exatamente este o tipo de estrutura construída pelos GCEEs que, pelo ganho de escala, lançam as bases econômicas e tecnológicas para o desenvolvimento de vários outros setores. Setores que talvez surjam não intencionalmente, mas que de qualquer forma têm o controle político sobre a dinâmica econômica exercido a partir das GCEEs como condição necessária. É, portanto, a flexibilidade institucional característica do socialismo de características chinesas a partir da criação dessa inovadora forma de propriedade que possibilitara o surgimento do Deep Seek.


[i] https://www.nytimes.com/2025/01/28/business/deepseek-owner-china-ai.html

[ii] JABBOUR, E & GABRIELE, A. China: O Socialismo do Século XXI. São Paulo: Boitempo, 2021, p.185

[iii] Ibid., p.186

[iv]LÊNIN, V. I. Imperialismo, estágio superior do capitalismo. São Paulo: Expressão Popular.

[v] JABBOUR, E & GABRIELE, A. p.192

[vi] MAJEROWICZ, E.; PARANÁ, E. A China no Capitalismo Contemporâneo. São Paulo: Expressão Popular, 2022, p.327


 [MC1]Jabbour, 188