ARTIGO

Alemanha: As sombras do passado se projetam no futuro (Parte 2)

Descubra o significado do Dia Internacional de Memória do Holocausto e a importância de homenagear as vítimas e suas famílias.

Descubra o significado do Dia Internacional de Memória do Holocausto e a importância de homenagear as vítimas e suas famílias.
Descubra o significado do Dia Internacional de Memória do Holocausto e a importância de homenagear as vítimas e suas famílias.

Matheus Colares do Nascimento (doutorando em filosofia pela University of East
Anglia – Inglaterra)

No dia 27 de janeiro comemora-se o dia internacional de Memória do Holocausto. A data, designada pela assembleia geral das Nações Unidas, celebra a libertação dos campos de concentração de Auschwitz-Birkenau, um dos maiores em atividade durante a ocupação nazifascista alemã na Polônia. A data é marcada por cerimônias de homenagem às vítimas e familiares onde diversos líderes de estado são convidados para participarem da atmosfera de comoção generalizada. 

Neste ano (2025), dois chefes de estado não participaram do evento, o presidente Vladimir Putin da Rússia, que desde o início da guerra na Ucrânia em 2022 não é mais convidado, e o Primeiro-Ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, substituído pelo ministro da educação de Israel Yoav Kisch. Netanyahu, teoricamente, não pode viajar para países signatários do Estatuto de Roma que estabelece a jurisdição do Tribunal Penal Internacional que no ano passado emitiu um mandado para a sua prisão por crimes de guerra cometidos contra o povo palestino. 

Esses dois fatos são significativos para compreender o real significado do evento que, nessas condições, mais se apresenta como um teatro sem qualquer compromisso efetivo com a memória do Holocausto. Afinal, os dois países (“país”, no caso de Israel) estão diretamente implicados no evento histórico. A Federação Russa é a unidade política que dá continuidade à União Soviética e que, portanto, reivindica a sua herança militar, que consiste em, dentre outros feitos, justamente a libertação do campo de Auschwitz-Birkenau, assim como, a derrota do nazifascismo. Ademais, a Rússia (ex-URSS) foi também um dos países alvejados na expansão territorial do Terceiro Reich. Os nazistas consideravam os eslavos, grupo étnico que ocupa a maior parte do centro e leste europeu, como raças inferiores que, por esse motivo, ocupavam ilegitimamente o vasto e fértil território – rico em terras agricultáveis e minérios-chave – o qual deveria ser tomado pelos arianos, povo que, pela sua superioridade racial, tinha reivindicação legítima sobre esse território. Essa ideia resume o conceito de espaço vital, central para a ideologia nazifascista. Como veremos, esse conceito ainda norteia a política externa alemã, embora em um sentido menos explícito.

Por outro lado, a participação de Israel no evento é vista como não problemática, mesmo sendo atualmente a única unidade política do mundo que promove um regime de ocupação colonial nos moldes tradicionais: caracterizado pela ocupação política de outro território e pela promoção de políticas de limpeza étnica dos povos que o habitavam há séculos. Ao protestar contra a participação da Federação Russa no evento, mas calarem-se com relação à de Israel, a mensagem que os países da centralidade do capitalismo – aí incluída a Alemanha – passam é que eles são hostis ao país que derrotou o nazismo, mas amigáveis ao país que continua o seu legado infame.

Não coincidentemente, ao analisar a política externa desses países, especificamente aqui a da Alemanha, vemos que esta mensagem é realmente o seu princípio orientador. No caso da Alemanha, isso é evidenciado em dois aspectos: no seu apoio aos grupos neonazistas na Ucrânia e no seu apoio direto ao genocídio do povo palestino perpetrado por Israel.

Dentre os países da União Europeia, a Alemanha é o maior apoiador bélico da Ucrânia. Em agosto do ano passado, o então Primeiro Ministro alemão anunciou que “o apoio à Ucrânia será mantido enquanto for necessário”. Apesar do regime de arrocho fiscal vigente no país, quatro meses depois, em dezembro, a Alemanha entrega um dos maiores pacotes de armamentos militares à Ucrânia, estimado no valor de 650 milhões de euros. 

Todos esses equipamentos estão indo parar na mão de grupos militares neonazistas que dominam o alto escalão do exército ucraniano. Quando a guerra da Ucrânia começou vieram à tona várias imagens de soldados de grupos armados ucranianos portando símbolos nazistas – por exemplo, o sol negro, o tridente e a suástica. Esses grupos reivindicam a memória de Stepan Bandeira, líder de um grupo nacionalista extremista fundado em 1929 na regiões do atual oeste da Ucrania, antes Polonia. Na época, o grupo liderado por Bandeira colaborou com ocupantes nazistas para reivindicar uma Ucrânia independente da União Soviética. O grupo foi também responsável pelo massacre de milhares de judeus e eslavos nas regiões de Lvov e Galizia (oeste da Ucrânia). A declaração de Scholz e a ajuda militar fornecida para esses grupos significa que a Alemanha está alinhada ideológica e políticamente com os ideais nazistas e com as ações racistas desses grupos que se expressa na sua russofobia contra as minorias étnicas russas que habitam o leste da Ucrânia.

Não coincidentemente, vemos uma repetição desse mesmíssimo alinhamento ideológico e político nas relações políticas entre Alemanha e Israel. A Alemanha também se coloca como apoiador-chave da ideologia e da política genocida e eugenista de Israel para com a Palestina. A dimensão ideológica desse apoio pode ser reconhecida em uma fala extremamente racista da Presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, ao afirmar que Israel “fez o deserto florescer”. Nesse comentário, a presidente sugere que o território ocupado historicamente pelos palestinos é um deserto cultural, um lugar sem povo e sem cultura, que deve ser ocupado por uma raça superior que construirá ali uma civilização. Com isso, ela reproduz a ideia básica do conceito de espaço vital que os nazistas reivindicavam contra os povos eslavos do leste europeu, considerada uma região e insignificante culturalmente, devendo ser ocupada por uma raça superior que levaria a civilização para a região.

A nível político, tal como na Ucrânia, a Alemanha fornece todos os meios para Israel promover os seus crimes contra a humanidade. Segundo o Stockholm International Peace Research Institute (SIPRI), em 2023 a Alemanha foi o segundo maior exportador de armamento convencional para Israel, totalizando 47% das importações totais de Israel em armamentos. Entre 2003 e 2018, cerca 30% das importações de armamentos de Israel foram de origem alemã, totalizando um valor aproximado de 1,1 bilhão de Euros. Esse montante explodiu nos 4 anos seguintes, entre 2019 e 2023 a Alemanha comercializou com Israel o mesmo montante dos 15 anos anteriores, 1,1 bilhão de euros em armamentos.

A graph of different types of weapons

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A política externa alemã mostra como o seu passado nazifascista continua vivíssimo. O Holocausto é estrategicamente tratado como evento histórico singular na história do Ocidente. Considerar o Holocausto como exceção e não como regra, possibilita que o Ocidente continue a perpetrar outros Holocaustos. A história do ocidente e a atuação desses países no cenário internacional mostra, na verdade, que catástrofes históricas do topo são na verdade a regra nas suas relações com outros povos.