Matheus Colares do Nascimento (doutorando em filosofia pela University of East Anglia – Inglaterra)
Desde o fim da Segunda Guerra Mundial a Alemanha se apresenta como exemplo de recuperação e redenção do seu passado n@zi-f@scist@. Se isso é verdade, como pode que atualmente a extrema-direita é a segunda maior força política no país? Nessa série de ensaios, desafio esse senso comum em três aspectos fundamentais: 1) a ascensão do partido de extrema-direita AfD, 2) a política externa alemã de apoio ao genocídio em Gaza e 3) o legado estadunidense das políticas eugenistas do n@zi-f@scismo.
As eleições federais na Alemanha estão se aproximando (marcadas para 23 de fevereiro de 2025) . A situação é tensa, pois o país vive um recrudescimento preocupante das forças políticas reacionárias, o partido de extrema-direita AfD (Alternative für Deutschland [Alternativa para a Alemanha] já é a segunda maior força política no país e isso assusta aqueles que reconhecem o perigo latente desse fenômeno para a história do país. Como isso aconteceu?
Desde o início do mandato de Chanceler de Olaf Scholz (SPD) havia suspeitas quanto à estabilidade da coligação “Semáforo” que formava o governo (assim conhecida por unir as cores vermelho, amarelo e verde dos partidos que a compõem: o SPD (Partido Social Democrata), FDP (Freie Demokratische Partei [Partido Democrata Livre]) e o Partido verde, respectivamente). Tais suspeitas logo se mostraram verdadeiras quando em 2022, com o início da guerra na Ucrânia, a Alemanha adere às sanções econômicas da OTAN contra a Rússia e deixa de comprar gás barato deste país, abdicando assim da sua principal fonte de energia barata.
De lá para cá a economia alemã entrou em uma espiral de problemas sem precedentes na sua história recente. O corte do fornecimento de gás russo prejudicou seriamente a pesada indústria mecânica alemã, faminta por energia barata, assim como o consumo das famílias, que dele precisam para se aquecer durante os quase dez meses do longo inverno alemão. Até o mais fraco economista keynesiano pode identificar a crise se aproximando. O aumento do custo de produção gera inflação dos produtos tornando-os menos competitivos no mercado nacional e internacional. A impossibilidade da sua realização (venda) gera expectativas de mercado negativas que, por sua vez, levam as indústrias a reduzirem sua produção. A redução da produção significa o fechamento de fábricas e demissão em massa de trabalhadores o que afita negativamente a composição da demanda agregada da economia. Isto é, com menos pessoas recebendo salário, há uma menor capacidade do mercado interno em absorver a oferta que já estava em queda. Para piorar essa situação, mesmo os trabalhadores não atingidos pelo crescente desemprego são afetados pela crise. O alto custo energético acaba por consumir uma maior parte dos seus salários o que, por sua vez, diminui a sua propensão a consumir. Isto é, se os trabalhadores precisam pagar mais caro em energia, isso lhes dá uma margem menor para gastar com outros produtos, impactando novamente a capacidade do mercado interno em absorver a oferta.
O remédio para tal situação crítica também o encontramos em qualquer manual introdutório de macroeconomia. Grosso modo, incapacidade da absorção da oferta pela demanda agregada deve ser compensada com política fiscal expansionista. O estado injeta dinheiro na economia impulsionando, assim, o principal componente da demanda agregada: a compra governamental. Nesse contexto, o estado atua como comprador de último recurso, recobrando a possibilidade de realização do capital industrial a partir da recomposição da demanda. Com isso, as expectativas negativas do mercado são revertidas, as empresas voltam a contratar e a economia volta a um estado de equilíbrio.
Foi nesse ponto, porém, que a aliança começou a desintegrar. Os verdes (aliança de partidos de centro-esquerda) favoreciam o financiamento da recuperação econômica e das políticas climáticas e energéticas da Alemanha por meio do impulsionamento da dívida pública (afinal, é para isso que ela serve). Em contrapartida, o partido liberal SPD defendia políticas neoliberais de austeridade fiscal tal como previstas nos adendos da lei orçamentária da Grundgesetz (constituição alemã) incluídos em 2009 depois da crise financeira global de 2008.
O delírio neoliberal do SPD evidencia o primeiro aspecto da inabilidade da Alemanha em lidar com o seu passado n@zista. Afinal, sabe-se muito bem que é a crise econômica, a piora nas condições de vida e a ausência de expectativas futuras positivas que causam o recrudescimento dos setores reacionários da sociedade. Um retorno à história moderna alemã mostra isso muito bem, a ascensão do n@zism0 no país foi gestada a partir de uma das maiores crises fiscais da história do capitalismo moderno até então.
Em 24 de outubro de 1929, a bolsa de Wall Street quebra e perde mais de 10% do seu valor nominal em apenas um dia. Em menos de três semanas após o acontecimento, dois dos maiores bancos da Áustria e Bélgica (o Bodencreditanstalt e o Banque de Bruxelles) declaram insolvência (impossibilidade de arcar com suas dívidas). Em dados concretos, isso desencadeou uma bola de neve de declínio na produção industrial global em mais de um terço do seu valor total (36%), valor que só seria recuperado em 1937, cinco anos depois. (nessa época, na Alemanha, em particular, retomava-se o fôlego da sua economia com o impulsionamento da produção industrial bélica, o país armava-se para a Segunda Guerra Mundial que seria deflagrada 2 anos depois).
A economia da Alemanha de então já estava gravemente fragilizada. Com a sua derrota na Primeira Guerra Mundial, as dívidas militares dos Aliados firmadas com os EUA foram-lhe transferidas a título de reparação, fazendo com que ela – a Alemanha – o elo mais fraco da corrente, também se afundasse em insolvência. A insolvência alemã gerara uma crise fiscal no país que, por sua vez, levara a uma crise de produção. Crises fiscais podem conduzir a crises de produção, pois, a ausência de confiança nos meios de pagamento afeta negativamente a oferta de crédito. Sem essa oferta, a produção industrial não consegue se financiar e, assim, a espiral descendente mencionada acima põe-se novamente em operação. Entre 1929 e 1932, a produção industrial alemã decresceu quase 50 por cento, o desemprego chegou a níveis chocantes de 20 por cento e o valor real do PIB recuou certa de 17 por cento.
Ao invés de adotar políticas para retomar o impulsionamento da economia o então chanceler da República de Weimar, Heinrich Brüning (1930-1932), se reúne com os seus credores do Tratado de Versailles para renegociar os termos de pagamento da dívida. O resultado dessa renegociação foi o Plano Young que, embora alargasse o espaço de tempo de pagamento da dívida, priorizava-a em relação às outras dívidas que a Alemanha contraíra com bancos estrangeiros. Isso fez com que os empréstimos, que o país precisava para se financiar, ficassem ainda mais difíceis de serem concedidos. Como resultado disso, segundo afirma Straumann (2019), o pensamento econômico pré-keynesiano da chancelaria alemã impôs a necessidade de superávit orçamentário, ou seja, austeridade fiscal: cortes orçamentários, aumento de impostos, salários mais baixos, em suma, desmonte do fomento a políticas públicas do estado.
O resto da história todo mundo já sabe. Menos o ex-ministro das finanças da recém-desfeita coalizão alemã, Christian Lindner – e os seus patrões – que parece não ver – ou não querer ver – a relação entre a suas políticas neoliberais e o crescimento da AfD, o partido de extrema direita.
Que Lindner não veja essa relação pode até ser compreensível se formos bastante caridosos assumindo a sua ingenuidade. (Lindner é o H4dd4d alemão, engomadinho, arrogante e neoliberal). Porém, que o governo inteiro e a sociedade alemã no geral não associe uma coisa a outra é mais preocupante e evidencia a concretude da dificuldade de lidar com o passado. Tal dificuldade se fundamenta no fato de que a solução para o crescente fascismo vai além do mero trato simbólico da questão. O artigo 86-A do código penal alemão – aplicado com muito mais rigor do que em ouros países –tipifica discursos e símbolos de extrema direita. Porém, creditar que o estabelecimento de uma lei – mesmo que esta seja observada – resolveria o problema é positivismo ingênuo. Como afirma Michael Kalecki em seu clássico texto Political Aspects of Full Employment, a luta contra o fascismo implica na melhora das condições de vida da população e na promoção de expectativas de melhoras contínuas, coisas que a austeridade fiscal ataca diretamente. Nesse sentido, a luta contra o fascismo significa a luta contra a austeridade e, portanto, contra as classes que a querem impor. Isso, porém, os neoliberais alemãs – e do mundo todo – não estão dispostos a admitir, uma vez que a precariedade das condições de vida gera um efeito disciplinador na classe trabalhadora sob o desemprego, a qual passa a dispor de menos capacidade de barganha. Do contrário, uma política fiscal expansionista de pleno emprego empodera a classe trabalhadora alimentando, assim, a sua ambição por emancipação, algo que não pode de forma alguma ser possibilitado.
REFERÊNCIAS
Aguiar, F. Na Alemanha, a crise se aprofunda. Outras Palavras. São Paulo, 2024. Disponível em: https://outraspalavras.net/eurocentrismoemxeque/na-alemanha-a-crise-se-aprofunda/.
Ferrero, A. A ascensão da Alternativa para a Alemanha (AfD): o que era impensável não é mais impensável. IHU unisinos. São Leopoldo – RS. Disponível em: https://www.ihu.unisinos.br/646649-a-ascensao-da-alternativa-para-a-alemanha-afd-o-que-era-impensavel-nao-e-mais-impensavel-artigo-de-angel-ferrero.
Kalecki Michał. Political Aspects of Full Employment. [s.n.]; 1943. Disponível em: https://jacobin.com/2018/05/political-aspects-of-full-employment-kalecki-job-guarantee.
Mankiw, N. Gregory author. Macroeconomics. New York :Worth Publishers, 2016.
Straumann T. 1931 : Debt, Crisis, and the Rise of Hitler. Oxford University Press; 2019.
Verian. Resultados eleitorais nacionais (Alemanha). https://results.elections.europa.eu/pt/resultados-nacionais/alemanha/2024-2029/0020.png
Como a coalizão de governo da Alemanha se desintegrou. Deutsche Welle. Disponível em: https://www.dw.com/pt-br/como-a-coaliz%C3%A3o-de-governo-da-alemanha-se-desintegrou/a-70717489.