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Mundo se acostumou à fome no Haiti, diz diretor de programa da ONU

Foto: Reprodução/Canva
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MAYARA PAIXÃO

BUENOS AIRES, ARGENTINA (FOLHAPRESS) – Assolado pela violência e pela falta de governo, o Haiti vê crescer também a fome. Hoje, metade da população vive em um nível grave de insegurança alimentar.

Os mais recentes dados divulgados pelo IPC, o chamado índice global de classificação da fase da insegurança alimentar, mostraram que, no mês passado, ao menos 5 milhões de haitianos viviam com fome.

Para o americano Jean-Martin Bauer, 45, o cenário contrasta com o de sua infância. Diretor no Haiti do Programa Mundial de Alimentos (PMA), agência da ONU laureada com o Nobel da Paz, ele é filho de mãe haitiana e pai francês. Quando criança, passou longas temporadas no país convivendo com um tio que plantava arroz. À época, os haitianos eram considerados autossuficientes em oferta de alimentos.

“Os grupos armados têm atacado os agricultores e sequestrado as mulheres que levam produtos agrícolas do campo para as cidades”, relata Bauer, baseado no escritório da organização em Porto Príncipe.

À reportagem ele detalha como o país chegou a esse atual cenário, critica o subfinanciamento das ações humanitárias no Haiti “uma completa tragédia”, diz ver no Fome Zero e no Programa de Alimentação Escolar do Brasil bons exemplos e se mostra contrário a uma nova missão armada no país. “Tropas em solo, sozinhas, não resolverão o problema.”

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PERGUNTA – O foco sobre a fome parece mais voltado a Gaza que ao Haiti. Por quê?

JEAN-MARTIN BAUER – Em Gaza, o nível de insegurança alimentar era bastante baixo antes da guerra. Aqui no Haiti, a fome, antes de março, quando os problemas mais recentes começaram, já era bastante alta.

No início deste ano, estávamos com 4,35 milhões de pessoas enfrentando insegurança alimentar aguda. Agora chegamos a 5 milhões. As coisas pioraram, mas já estavam bastante ruins antes.

Sim, há uma atenção dedicada a Gaza, à Ucrânia, e isso é um problema porque os orçamentos disponíveis para assistência humanitária são menores. Eles aumentaram bastante durante os anos da Covid, mas agora diminuíram. O que não diminuíram foram as necessidades. O resultado é que não há financiamento suficiente para todas as necessidades que estão por aí, e o Haiti está sofrendo com isso.

O plano de resposta humanitária da ONU para o Haiti está orçado em US$ 674 milhões [R$ 3,3 bilhões]. Apenas 6,6% disso está financiado. É uma tragédia. No PMA ainda precisamos de US$ 100 milhões [R$ 500 milhões] para os próximos seis meses. Se não conseguirmos, simplesmente não conseguiremos continuar fazendo o esforço de salvar vidas.

P – E por que é tão difícil chamar atenção para o Haiti? Há uma estafa?

JMB – Costumamos ouvir que as opiniões nos países ocidentais não são tão sensíveis ao sofrimento em lugares distantes como costumavam ser.

No caso do Haiti, não é um problema novo. Em 2016, não havia insegurança alimentar aguda no Haiti. Após o furacão Matthew, no final daquele ano, eram 1 milhão nessa situação. O número chegou a 4 milhões durante a Covid. Agora estamos em 5 milhões.
Acho que faz parte da natureza humana não estar tão ciente ou alerta para uma ameaça que surge gradualmente. Talvez as pessoas tenham se acostumado ao Haiti sofrendo com níveis tão altos de fome. Mas não deveria ser uma desculpa.

O Haiti sofreu com fome em massa por muito tempo. Isso significa que é ruim para o tecido social. É corrosivo. Provavelmente é um fator que contribuiu para a instabilidade no país. As pessoas esgotaram seus recursos, esgotaram seus mecanismos de enfrentamento.
P – Como a agricultura local tem sido impactada pelas gangues?

JMB – O celeiro do Haiti é um lugar chamado vale do rio Artibonite, ao norte de Porto Príncipe. É uma área fértil e irrigada. Essa terra tem estado sob crescente influência de grupos armados, que têm atacado os agricultores. Eles têm sequestrado as mulheres que levam produtos agrícolas do campo para as cidades.

Fui lá pessoalmente por volta dessa época no ano passado, e as pessoas lá estavam sentadas em mangas apodrecendo, porque tinham medo de ir à vila para carregar caminhões e levá-las para o mercado. Simplesmente era muito perigoso para elas. Não muito longe dali, havia um hospital cheio de crianças desnutridas.

Os grupos armados estão impedindo o funcionamento do sistema alimentar. As pessoas que deveriam alimentar o país estão se escondendo em casa. Enquanto houver conflito, não teremos um Haiti com segurança alimentar. Mas, se o Haiti está passando fome, é realmente difícil estabilizá-lo. É uma via de mão dupla. Eu realmente me pergunto como conseguiremos encontrar paz em um país no qual metade de seus cidadãos enfrenta fome aguda.

P – Como as crianças são afetadas?

JMB – Há 277 mil crianças em risco de desnutrição aguda. E mais de 100 mil estão em risco de desnutrição aguda grave, quando precisam ir ao hospital. Desde 2001 trabalhando com o PMA em vários países, sempre vi que a desnutrição era mais alta em uma área remota, muito pobre, no campo. No Haiti, os níveis mais altos de desnutrição não estão em áreas rurais. Estão bem aqui, em Porto Príncipe. E isso é por causa da presença desses grupos armados que estão tornando a vida impossível.

P – O sr. falou sobre o financiamento. Como a comunidade global pode e deveria ajudar?
Atualmente, em Porto Príncipe, não há voos. O aeroporto está fechado há um mês. O porto também. Nenhum navio chega. E as estradas dentro e fora de Porto Príncipe, uma cidade de quase 3 milhões de pessoas, são controladas por grupos armados. A cidade está essencialmente em estado de bloqueio.

O que precisamos é que o porto esteja operacional. Que os barcos cheguem trazendo alimentos, porque estamos vendo os preços aumentarem bastante. Isso é algo que a comunidade internacional poderia fazer: é tentar favorecer a retomada do tráfego. E um dos riscos que quero alertar às pessoas é o de que tropas em solo, sozinhas, não resolverão o problema aqui.

O Haiti costumava ser autossuficiente nos anos 1980. E as escolhas políticas fizeram com que o país não fosse mais autossuficiente. O país abriu suas fronteiras para o livre comércio. Houve menos investimento na agricultura. Agora, o Haiti importa metade de seus alimentos.

Este país pode se alimentar. Precisamos investir nos pequenos agricultores, e acho que o Brasil tem programas muito interessantes que mostram como isso pode ser feito. Precisamos apoiar os pequenos agricultores deste país para que possam alimentar seu próprio povo.

P – O Brasil, então, tem sido uma inspiração?

JMB – Sim, absolutamente. O Brasil mostra que é possível, com o programa Fome Zero e também ajudando pequenos produtores a fornecerem para escolas públicas no Brasil.
O PMA tem um programa de alimentação escolar. Compramos de 170 organizações de pequenos agricultores, de agricultores familiares, e levamos para quase 250 mil crianças haitianas todos os dias.

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RAIO-X | JEAN-MARTIN BAUER, 45
Nascido em Washington, formou-se na London School of Economics e em Harvard. Desde o início dos anos 2000 trabalha no Programa Mundial de Alimentos da ONU. Já passou por escritórios como os de Níger, Guiné-Bissau, Senegal e República Democrática do Congo. Desde 2022 coordena as ações no Haiti.