ARTIGO

IA e Arte: Algumas Questรตes (Parte I)

Recentemente, ocorreu uma polรชmica na internet causada por uma nova funรงรฃo de uma ferramenta de inteligรชncia artificial para reproduzir fotos com a estรฉtica do estรบdio Ghibli

Recentemente, ocorreu uma polรชmica na internet causada por uma nova funรงรฃo de uma ferramenta de inteligรชncia artificial para reproduzir fotos com a estรฉtica do estรบdio Ghibli
Recentemente, ocorreu uma polรชmica na internet causada por uma nova funรงรฃo de uma ferramenta de inteligรชncia artificial para reproduzir fotos com a estรฉtica do estรบdio Ghibli

Matheus Colares do Nascimento

Recentemente, ocorreu uma polêmica na internet causada por uma nova função de uma ferramenta de inteligência artificial para reproduzir fotos com a estética do estúdio Ghibli, um famoso estúdio de animação japonês[1]. A revolta dos defensores da pura arte denunciava a banalização da arte que essa ferramenta promove, em oposição à arte autêntica que é produzida pela mão do animador que despende uma grande quantidade de trabalho para a criação das suas obras. Ademais, teme-se que o desenvolvimento das técnicas de IA ponha em risco postos de trabalho de muitos trabalhadores do setor artístico. Neste ensaio de duas partes, abordo esses dois aspectos da questão, expondo os equívocos fundamentais dessa reação negativa. Nesta primeira parte, abordo a questão da suposta banalização da arte pelo emprego da IA. Argumento que a crítica de banalização advêm de uma concepção estética purista, que ignora a sua própria materialidade e historicidade e a das obras de arte.

  1. Historicidade e materialidade do objeto de arte

A ideia central que permeia a polêmica é a de que a IA nunca poderá efetivamente produzir uma obra de arte, porque uma máquina não pode ser dotada de iniciativa estética, isto é, ela não pode idealizar uma obra original, mas apenas reproduzir uma identidade estética já existente, mesmo que essa identidade seja aplicada à materiais novos e, assim, dê origem a novas “ilustrações”. A IA assim, banaliza a arte, na medida em que impulsiona a sua reprodutibilidade sem, porém, possibilitar que a iniciativa estética, que só pode ser conferida pela mão do/a artista, a acompanhe.

            De fato, é possível compreender esse tipo de reação de ojeriza estética, no contexto de formas de apreciação estética particulares, as quais, apesar de serem fundamentalmente a expressão particular de uma experiencia histórica determinada, se concebem como fruto de uma percepção pura, desconectada da materialidade e historicidade dos objetos de arte e da sua própria formatação perceptiva. Que esse tipo de concepção estética seja ainda dominante nos dias atuais é também compreensível, uma vez que, como afirma Walter Benjamin[2], a transformação da superestrutura da sociedade – de onde vêm as formas de percepção estética – ocorre muito mais lentamente que a transformação da infraestrutura – onde a materialidade e a historicidade dos objetos dessa percepção são determinadas[3]. O que isso significa é que a forma de apreciação estética, que sanciona os objetos artísticos como tais, se altera de forma muito mais devagar que a evolução tecnológica que transforma as formas de criação desses mesmos objetos. Enquanto os modos de produção se desenvolvem e permitem o surgimento de novas formas de intervenção na realidade material, da qual os objetos artísticos são feitos, a apreciação da arte se segura ainda a formas de produção há muito ultrapassados, criando, assim, um descompasso entre percepção e produção.

O que se percebe na polêmica sobre a aplicação da IA na arte é que a superestrutura, isto é, a consciência artística permanece inalterada desde a publicação deste texto. O que informa o olhar estético preciosista de ojeriza ao uso da IA na arte é o fato de que a reprodutibilidade do objeto de arte o desconstitui enquanto tal, na medida em que o torna comum, isto é, despossuído de autenticidade. Ou, nas palavras de Benjamin, a reprodução permitida pelo surgimento de novas formas tecnológicas de produção material destrói a aura do objeto de arte, que é o que o constitui enquanto tal[4]. Segundo Benjamin, a concepção de que um objeto de arte possui uma aura se forma a partir da não-reprodutibilidade do objeto de arte. O objeto de arte, por exemplo, uma pintura, possui um aqui e agora. Para o olhar tradicional sobre a arte – o olhar do puro esteta – até a mais perfeita reprodução de uma pintura não permite a reprodução da sua autenticidade, porque esta só se encontra na existência única do original e no seu respectivo lugar de idolatria[5].

Benjamin, porém, ao invés de reificar o conceito de aura, o insere em perspectiva histórica em conexão com a sofisticação das técnicas de produção. De fato, como ele afirma, as obras de arte, por terem uma dimensão material, sempre foram sujeitas à reprodução. No entanto, a dimensão da reprodução material que impacta este aspecto não possuíra até então – e até hoje não possui – precedentes na história da humanidade. Nesse sentido, a ideia da existência de uma aura pôde surgir e formatar um tipo de percepção estética, porque antes da revolução industrial o impacto das técnicas de reprodução sobre a autenticidade eram ínfimos. Isto é, nesse contexto, era possível pensar uma percepção estética desconectada da sua materialidade e historicidade, porque o impacto ínfimo das técnicas primitivas de reprodução sobre a aura sequer era percebido, afinal elas não poderiam ser reproduzidas em massa[6].

Ao reconhecer, porém, que o estágio de desenvolvimento da reprodução material da sociedade impacta a formatação da percepção estética, Benjamin reconhece a historicidade da percepção estética. Nesse sentido, ele reconhece, assim como o modo de existência humano se altera com o tempo, também a percepção humana sobre a sua realidade se altera e, nesse sentido, inevitavelmente, também a percepção estética deve se alterar[7]. É ingênuo, portanto, acreditar que é a aura que determina a qualidade dos objetos de arte. A aura é uma característica da forma de percepção estética. Acreditar, portanto, que um objeto de arte para ser tal deve possuir uma aura é inverter a ordem do aparecimento histórico das coisas. O olhar anti-tecnológico sobre a aplicação da IA à arte é dotado dessa ingenuidade, porque preserva a aura não como forma de percepção, mas como demanda colocada sobre os objetos de arte. Ao negligenciar o seu aspecto material, negligencia também a historicidade da sua própria forma de percepção estética enquanto uma particular forma de percepção.

Essa confusão aparece já na discussão sobre a natureza das novas formas artísticas que surgem no início do século XX e que são objeto de análise de Benjamin. Afinal, as mesmíssimas concepções que baseiam a rejeição do uso da IA na arte também informavam a rejeição da fotografia e do filme enquanto formas vanguardistas de arte. Isto é, no mesmo sentido que os puros estetas do século XXI rejeitam a possibilidade da IA contribuir para a criação de objetos artísticos de animação, os puros estetas do século XX rejeitavam o filme e a fotografia como capazes de gerar objetos artísticos genuínos. Não à toa o filme é um estudo de caso de grande relevância para a análise de Benjamin. Para os puristas de então, o filme e a fotografia eram uma degeneração da pintura, porque destruíam a autenticidade capturada pela pintura a partir das suas formas avançadas de reprodução[8]. Para Benjamin, a fotografia e o filme ao potencializarem o que ele chama de valor de exibição da arte, iminentemente ligado à possibilidade da sua reprodução, inevitavelmente destrói a aura[9].

O que diferencia os estetas puristas de hoje dos de então é o reconhecimento da animação, dos filmes do estúdio Ghibli, como formas genuínas de arte. Esse reconhecimento, porém, é absolutamente paradoxal, porque as suas novas formas artísticas favoritas foram tão responsáveis pela destruição da aura, quanto hoje a IA o é. Esse paradoxo só pode ser explicado pela intensificação do descompasso entre percepção e produção que Benjamin identifica. O puro esteta, porém, independente da intensidade do descompasso parece incapaz de reconhecer a sua forma de percepção enquanto tal.

Esse, porém, não é um fenômeno incomum, ou mesmo exclusivo da percepção estética enquanto percepção historicamente instituída. Para Benjamin, a instituição dessa forma de percepção está ligada ao seu valor de culto[10]. Porém, na medida em que a percepção estética ganha autonomia dos seus contextos originais de culto, por exemplo, do ritual religioso ou mágico, a arte ganha autonomia e se consagra como forma autônoma de culto e, como Bourdieu coloca, a forma autônoma de culto gera a sua própria forma autônoma de adoração[11] . O puro esteta, ao focar na sua própria forma de percepção, enquanto forma pura, isto é, imaterial e deshistoricizada, inconscientemente estabelece a singularidade e universalidade da sua própria experiencia, enquanto forma de toda experiencia estética[12]. Em outras palavras, para Bourdieu, o desenvolvimento de uma forma histórica de percepção artística somente se consagra a partir da sua própria negação histórica enquanto uma forma de percepção. Assim, o olhar do puro esteta se estabelece enquanto verdade universal e transhistórica.

Obviamente, a partir da discussão acima, fica claro que a aura não é uma propriedade natural nos objetos de arte, mas uma propriedade instituída que permite distinguir os objetos de arte de objetos convencionais dentro de uma certa forma de percepção estética. Porém, a instituição do olhar puro ganha objetividade a partir do esquecimento da instituição histórica das condições sociais de produção e reprodução do objeto de arte, as quais, em sentido contrário, uma análise teórica informada e não-infantil deve considerar. Nesse sentido, cabe ao intelectual, que renega a ilusão de universalidade do olhar estético puro, entender os mecanismos que possibilitam a apreciação dos objetos de arte de uma certa forma, enquanto ligada, ela mesma, à produção desses mesmos objetos para serem apreciados desta mesma forma em uma dinâmica de retroalimentação que só aparece como objetiva para aqueles indivíduos, com existência histórica determinada e socialização adequada no campo das artes, que investem seu olhar estético na percepção destes objetos da forma apropriada[13].

No entanto, uma análise teórica da forma artística deve necessariamente romper com esse fenômeno e entender que o olhar estético que procura a aura nos objetos artísticos é, em verdade, um produto da história do desenvolvimento deste mesmo olhar. Assim como Benjamin, Bourdieu[14] permite compreender o ponto de vista instituído do puro esteta enquanto historicamente determinado e, por isso, contingente. Contingentes, nesse sentido, são também os conceitos que informam este ponto de vista, como o conceito de autenticidade, genialidade, artista enquanto criador, etc. que informam este mesmo olhar. A análise informada é historicizante e, nesse sentido, desessencializante[15].

            Evidentemente, este debate não se esgota aqui, afinal o avanço das formas de produção da materialidade dos objetos de arte não afetam apenas a percepção estética, mas a própria atividade do artista que, enquanto interventor na realidade também produz valor. Resta, portanto, analisar os impactos das alterações da base de produção material sobre as condições de trabalho do artista. No entanto, mesmo este aspecto da discussão no contexto da polêmica do estúdio Ghibli também está colocado de forma equivocada, mesmo que esteja em consonância com alguma sensibilidade moral.


[1] https://www.meioemensagem.com.br/marketing/studio-ghibli-onda-nas-redes-sociais-reacende-debate-sobre-ia-e-direito-autoral

[2] BENJAMIN, WALTER, and MICHAEL W. JENNINGS. ‘The Work of Art in the Age of Its Technological Reproducibility [First Version]’. Grey Room, no. 39 (2010): 11–38, p.11.

[3] BENJAMIN, WALTER, and MICHAEL W. JENNINGS. ‘The Work of Art in the Age of Its Technological Reproducibility [First Version]’. Grey Room, no. 39 (2010): 11–38, p.12

[4] Ibid., p.12.

[5] Ibid., p.13.

[6] Ibid., p.19.

[7] Ibid., p.15.

[8] Ibid., p.13

[9] Ibid., p. 19

[10] Ibid., p.17.

[11] Bourdieu, Pierre. ‘The Historical Genesis of a Pure Aesthetic’. The Journal of Aesthetics and Art Criticism 46 (1987): 201–10. https://doi.org/10.2307/431276, p.201.

[12] Ibid., p.202.

[13] Ibid., p.203.

[14] Não coincidentemente, ambos apontam para o caráter mágico que informa o olhar do puro esteta.

[15] Ibid, p.204.

Matheus Colares do Nascimento (doutorando em filosofia pela University of East Anglia – Inglaterra)