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Coração de madeira

Coração de madeira
“Pinocchio” é um clássico moderno criado por Guillermo Del Toro. FOTO: divulgação

Desde que “As Aventuras de Pinóquio”, do italiano Carlo Collodi, foi publicado em 1883, a história do menino de madeira que ganha vida e o nariz cresce cada vez que mente, ganhou inúmeras adaptações para o teatro, quadrinhos e o cinema. Muitas foram fiéis ao clássico literário (como o mais famoso, da Disney, de 1940). Por isso, surgiram muitas dúvidas quando Guillermo Del Toro anunciou que faria uma nova versão, em stop motion, para a Netflix.

As dúvidas se dissiparam já quando os primeiros frames do filme iniciam na plataforma de streaming. Del Toro não apenas recriou “Pinocchio” (2023), como criou novas camadas de personalidade para os personagens e trouxe muitos elementos novos, para deleite dos fãs e de quem gosta de bons filmes.

Primeiro, é um filme lindo. O stop motion é bem feito e o design de produção, impecável. Detalhes da casa de Gepeto e do bunker fascista ganham contornos de fábulas, mas guardam o clima dark que o diretor adora, encantando e assustando a audiência ao mesmo tempo. As cenas envolvendo os espíritos da morte e da floresta adquirem tons surrealistas e filosóficos sobre o sentido da vida, remetendo à clássica animação “As Aventuras de Mark Twain” (1985).

Outro acerto é a caracterização do personagem. Se antes, todos tinham contornos humanos, nesta nova fase, ele é realmente um boneco de madeira, com pregos à mostra e galhos de árvores como membros do corpo e cabelo. Aqui, também se sobressai a personalidade do brinquedo. Se nas outras versões, Pinóquio era bondoso e obediente, aqui ele é teimoso, impulsivo e ansioso para conhecer o mundo. Gepeto, por outro lado, tem o conservadorismo de um pai que perdeu o filho humano tragicamente, mas que vai cedendo às aventuras ao lado do seu novo parceiro de madeira.

Del Toro enche sua obra de referências, de clássicos de guerra em preto e branco a Frankenstein, e leva os personagens para a Itália fascista da década de 1930, onde o medo e a pobreza dominavam aquele país. Isso é importante para adicionar críticas a regimes e atitudes autoritárias em confronto com espíritos livres e a criatividade, presente na dinâmica entre pai e filho de Gepeto e sua criação.

E ainda abre espaço para reflexões sobre vida, religião, sociedade e mortalidade, com uma história limpa, bem escrita e um final emocionante. Se alguém não derramar algumas lágrimas, não tem coração. Depois da bobagem que foi a antologia “Gabinete de Curiosidades”, é alentador que Del Toro receba sinal verde da Netflix para outros ótimos projetos como “Pinocchio”. Esperamos que essa parceria renda outras obras tão boas quanto.