O Superior Tribunal Militar (STM) confirmou a condenação de Ana Lucia Umbelina Galache de Souza, que, entre novembro de 1988 e junho de 2022, recebeu indevidamente uma pensão ao se passar por filha de um ex-combatente da Segunda Guerra Mundial. As informações são do portal g1. A mulher alterou documentos para dizer que Vicente Zarate, um ex-membro da Força Expedicionária Brasileira (FEB), era seu pai, com intuito de enganar o Exército Brasileiro e garantir o benefício – que somou R$ 3,7 milhões enquanto estava ativo -, mas acabou condenada pela Justiça Militar.
Representada judicialmente pela Defensoria Pública da União (DPU), ela alega que não houve dolo, ou seja, intenção de cometer o crime.
Considerado um dos benefícios mais polêmicos das Forças Armadas, o pagamento de pensão às filhas de militares mortos, muitas delas casadas e em idade produtiva, foi extinto em 2000. Dados fornecidos pelo Exército em 2018, no entanto, estimaram que a despesa ainda estará próxima a R$ 4 bilhões em 2060.
Aproximadamente 180 mil filhas de militares receberam pensão vitalícia no Brasil em 2018. Segundo a Advocacia-Geral da União, a pensão especial às filhas dos ex-combatente da Segunda Guerra Mundial foi estabelecida pela Lei nº 4.242/63, que “reconhecia o pagamento àqueles que “participaram ativamente das operações de guerra e se encontram incapacitados, sem poder prover os próprios meios de subsistência e não percebem qualquer importância dos cofres públicos, bem como a seus herdeiros””.
Como funciona o benefício?
Em 2000, o benefício foi extinto após uma mudança na legislação e a pensão só poderia ser paga a filhos ou enteados até os 21 anos de idade ou até 24, se estudantes universitários. Mas um militar que entrou em uma das Forças Armadas em 2000 ou antes ainda poderá garantir esse benefício à sua filha quando morrer, mesmo que isso ocorra somente daqui a algumas décadas. Basta que pague uma contribuição adicional de 1,5%.
Em abril de 2018, o Exército gastou R$ 407,1 milhões com as pensões de 67.625 filhas de militares. É um valor que pode variar a cada mês, em razão da morte de pensionistas e da concessão de novos benefícios. Também segundo a Força, entre 2010 e 2016, houve uma redução de 15,6% no gasto com as pensões. E de 2016 a 2060, a estimativa será uma redução de 25%.
A concessão do benefício passou por várias fases. Uma lei de 1960 permitia a pensão “aos filhos de qualquer condição, inclusive os maiores do sexo masculino”. Em 1991, a lei foi modificada e passou a permitir apenas filhas solteiras. No mesmo ano, o então procurador-geral da República Aristides Junqueira apresentou uma ação no Supremo Tribunal Federal (STF) pedindo a anulação da alteração.
Na avaliação de Junqueira, a alteração do Senado “modifica substancialmente o projeto” não é “mera alteração redacional”. Mesmo assim, o texto foi enviado diretamente à sanção presidencial, sem passar pela Câmara novamente. Em julgamento realizado em 1993, o STF entendeu que havia outras falhas no processo legislativo, considerou a emenda inconstitucional, e as casadas voltaram a ter o benefício.
Em 2018, as filhas de militares que recebiam pensão somavam mais de 110 mil nas três forças militares. Além do Exército, há 22.829 pensionistas na Marinha, das quais 10.780 são casadas e 12.049 são solteiras; e 20.070 na Aeronáutica, das quais 11.178 são casadas e 8.892 são solteiras. Além disso, 345 acumulam mais de uma pensão na Marinha, e 64 na Aeronáutica. É o caso, por exemplo, de quem, além de filha, também é viúva de militar. Na ocasião, o Exército não repassou dados mais detalhados do perfil das pensionistas. Já Aeronáutica e Marinha não deram valores.
Como o Exército foi enganado por 33 anos?
Em 1986, aos 15 anos, Ana Lucia alterou seu nome para Ana Lucia Zarate e apresentou documentos falsos para a Força, com a ajuda da avó, Conceição Galache. Após a morte do ex-combatente, em 1988, Ana passou a receber uma pensão mensal que, ao longo dos anos, variou até alcançar cerca de R$ 8 mil. A informação foi revelada pelo site Metrópoles e confirmada pelo GLOBO.
O golpe permaneceu oculto até 2021, quando a avó de Ana Lucia, insatisfeita com o acordo financeiro estabelecido, denunciou a neta à Polícia Militar de Mato Grosso do Sul, onde moram. “Em 2021, Conceição, descontente com a parcela da pensão que lhe era transferida por sua neta, registrou a denúncia sobre a fraude, perante a Polícia Militar. No entanto, não chegou a ser inquirida na sindicância administrativa nem no inquérito policial, pois faleceu em maio de 2022”, informou o processo do Tribunal de Contas da União (TCU), ao qual o GLOBO teve acesso.
Em depoimento, segundo a CNN, a idosa revelou que Ana Lucia, na verdade, era sobrinha-neta do ex-combatente e, portanto, não tinha direito ao benefício, reservado apenas a cônjuges ou descendentes diretos de militares falecidos.
Em 2023, a Justiça Militar condenou Ana Lucia a três anos de prisão e determinou a devolução dos valores recebidos ilegalmente. “Considerando que o benefício militar foi recebido de forma absolutamente fraudulenta, julgo irregulares as contas da responsável, condeno-a em débito, cujo valor atualizado é de R$ 3.194.516,77, e à multa prevista no art. 57 da Lei 8.443/1992”, escreveu o relator, ministro Walton Alencar Rodrigues, no processo.
Ainda de acordo com o TCU, “em seus interrogatórios, Ana Lúcia admitiu ter ciência da falsificação e da ilegalidade de seus atos e declarou que somente utilizava a identidade de Ana Lúcia Zarate para tratar de questões relacionadas à administração militar e à pensão”.
Ao GLOBO, o TCU também afirmou que “no dia 20 de agosto de 2023, o Comandante do Exército tomou conhecimento das conclusões contidas no relatório e certificado de auditoria, manifestando-se pela irregularidade das contas”.
(AG)