
Mino Carta, criador de publicações e renovador do jornalismo brasileiro, morreu nesta terça-feira (2), aos 91 anos. Ele estava internado havia duas semanas na UTI do hospital Sírio-Libanês, em São Paulo.
“Há um ano, Mino lutava contra os problemas de saúde, em idas e vindas do hospital”, informou a CartaCapital.
Inseparável de sua grande companheira, uma máquina de escrever Olivetti, Mino é um nome que se confunde com a história do jornalismo brasileiro. Fez parte da equipe que fundou o Jornal da Tarde, nos anos 1960, e, na mesma década, lançaria a revista Veja, marco das publicações semanais brasileiras. Em seguida, ainda fundaria a Istoé e, já nos anos 1990, a CartaCapital.
Em post nas redes sociais, o presidente Lula (PT) lamentou a morte do jornalista, de quem era amigo há quase 50 anos. “Estas décadas de convivência me dão a certeza de que Mino foi e sempre será uma referência para o jornalismo brasileiro por sua coragem, espírito crítico e compromisso com um país justo e igualitário para todos os brasileiros e brasileiras”, escreveu.
O petista declarou luto oficial de três dias no país e mudou sua agenda desta terça para acompanhar o velório.
Mino nasceu em Gênova, na Itália, batizado como Demétrio Carta, em uma família que já se dedicava ao jornalismo havia gerações seu avô chegou a dirigir um jornal italiano.
Mas há divergências em relação a sua data de nascimento: o passaporte italiano diz que nasceu em 6 de novembro de 1933, mas outros documentos mostram datas diferentes. O certificado de serviço militar, por exemplo, trazia a data de 6 de janeiro de 1934. Considerava o passaporte a data correta.
Sua infância foi marcada pela Segunda Guerra na Europa. Em entrevista ao jornalista e escritor Lira Neto, para o projeto Memória do Brasileiro Jornalismo Contemporâneo, dizia lembrar-se com clareza dos bombardeios todas as noites. Os Carta corriam para abrigos ao som das sirenes, e um dos irmãos teria ficado com as mãos trêmulas até três anos depois do fim do conflito.
Mas começou já cedo o pendor à esquerda pelo qual também seria lembrado. O pai, Giannino, era antifascista e chegou a ser preso pelo regime de Mussolini em 1944, mas acabaria fugindo.
A família veio para o Brasil em seguida, porque o patriarca recebera um convite para dirigir a Folha. O empresário Francisco Matarazzo Júnior, que tentava ter o controle do jornal, foi quem o convidou mas, por ser italiano, Matarazzo era impedido pela legislação brasileira ter meios de comunicação e, depois, em conflito com os parceiros na empreitada, acabaria se afastando da empresa. Quando Gianinno chegou ao Brasil, não havia mais o emprego prometido.
O primeiro contato com o jornalismo de Mino foi ainda adolescente. O pai tinha recebido um convite para escrever, para jornais italianos, sobre os preparativos do Brasil para a Copa de 1950. Mas o patriarca detestava futebol e ofereceu a tarefa ao filho. Mino pensou que daria para comprar um terno azul com o dinheiro e topou afinal, não perdia um bailinho e queria estar bem vestido.
A família ainda voltaria para a Itália, em 1956, e Mino começaria uma carreira no jornalismo do país. Mas foi ali também que começou o trabalho para publicações brasileiras, aos 27 anos, quando passou a escrever, como correspondente, para o jornal Diário de Notícias e a revista Mundo Ilustrado.
Em seguida, seu pai recebeu um convite para voltar ao Brasil, para comandar a editoria internacional do jornal O Estado de S. Paulo.
Pouco depois, foi a vez de Mino receber o convite do editor Victor Civita, da Abril, para dirigir a Quatro Rodas, que seria lançada ali os irmãos Carta já ocupavam à época outros cargos na empresa. A verve crítica do jornalista não costumava poupar nem seus patrões, mesmo quando os elogiava. “O velho Victor Civita, embora reacionário, era um homem de valor”, dizia.
Mino brincava que o motivo para o sucesso da Quatro Rodas foi o fato de ele não entender nada de carros. Sua ignorância, segundo ele, permitiu que “outros, mais conhecedores do assunto, tivessem o desempenho adequado”. Era um momento de consolidação da indústria de automóveis brasileira, que criava um ambiente economicamente propício para o surgimento daquela publicação.
Mino deixou a Quatro Rodas a convite de Julio de Mesquita Neto, de O Estado de S. Paulo, para criar uma publicação especial do jornal sobre esportes, a Edição dos Esportes, que saía às segundas-feiras e trouxe inovações gráficas e de linguagem, com fotos grandes em destaque. Durou um ano, mas foi o protótipo para a criação do Jornal da Tarde, em 1966, para o jornalista onde levou amigos da Abril.
Deixou O Estado de S. Paulo, segundo contava, por se sentir incomodado com o apoio que o jornal deu ao golpe de 1964. Aceitou um novo convite da família Civita para voltar à Abril, dessa vez para criar uma publicação que marcou o jornalismo semanal no país: a Veja.
“O Victor Civita era um esperto que, nesses domínios, fazia qualquer negócio, mas não da mesma forma. Nos bastidores do Estadão, ele era até chamado de empresário marxista”, contava Mino.
Achava o ex-patrão de “um reacionarismo hediondo”, mas também via nele o “fôlego de um realizador, um criador de novidades”. Achou que teria mais liberdade na Veja, e dizia ter colocado como condição para aceitar o trabalho que os Civita não interviessem na publicação e só pudessem discutir cada edição depois de impressa. Roberto Civita, em um depoimento, confirmaria que o acordo vigorou no início, mas também o relativizava: Mino, segundo ele, tinha independência, não autonomia.
Mas, não custa lembrar, começava ali a ditadura militar e Mino, um forte opositor do regime, viu já de cara a Veja sofrer com a censura. A revista sofreu assédio incansável da repressão, que ia à redação buscar críticos do regime.
“Devo ter prestado uns 40 depoimentos na Polícia Federal. Talvez até mais. Fui preso duas vezes”, dizia.
Contava também que, quando o delegado Sérgio Fleury o ameaçava, dizendo que ia fechar sua revista, Mino respondia: “Minha não, dos Civita”
Orgulhava-se de uma vez em que conseguiram driblar a censura na Veja. Em 1969, os jornalistas da revista denunciaram 150 casos de tortura pelo regime, o que levou a revista a ser recolhida. Na edição seguinte, repercutiram um discurso do então chefe de propaganda da ditadura, com uma chamada principal de título ambíguo: “O presidente não admite a tortura”.
Os conflitos com a ditadura também foram o pano de fundo da saída de Mino da Veja. Há duas versões principais aqui, uma de Mino e outra da família Civita.
O jornalista dizia que a situação foi ficando “mais sombria” depois do assassinato de Vladimir Herzog. E relatava que um dos motivos de sua saída foi a recusa em demitir o dramaturgo Plínio Marcos, um pedido do ministro da Justiça, Armando Falcão.
Também difundia a versão de que sua saída tinha sido uma negociação dos Civita com o regime, em troca de um empréstimo de US$ 50 milhões que a Abril tentava junto à Caixa Econômica Federal. Mino chegou a dizer que, em conversa com Falcão, o ministro tinha dito que os donos da editora tinham atribuído ao jornalista a oposição da Veja ao regime.
Na biografia “Roberto Civita – O Dono da Banca” (Companhia das Letras), o jornalista Carlos Maranhão traz um relato diferente. Segundo o biógrafo, Roberto Civita tinha estabelecido que qualquer coluna precisava de sua autorização prévia e a contratação de Plínio Marcos fora a gota d’água.
Civita confirmava o pedido do regime para se livrar de Mino, mas disse que defendeu o funcionário como um dos melhores jornalistas do Brasil. Em depoimento ao biógrafo, Roberto disse que Mino cortou a própria cabeça, “com sua postura irracional, incapaz de aceitar qualquer tipo de moderação”. Ele também qualificava os relatos de Mino como fantasiosos e ressentidos.
Saído da Veja, Mino teve uma curta passagem pela Folha, aonde chegou a convite do então diretor de Redação, Cláudio Abramo, para assinar uma coluna na página dois do jornal. Mas logo sairia para fundar a Istoé. A revista começou como mensal, virou quinzenal e, depois, tornou-se semanal.
Foi nessa época que se firmou uma amizade longeva com Lula. Em 1978, a Istoé publicou uma grande entrevista com aquele que era um líder ainda em ascensão entre os metalúrgicos de São Bernardo do Campo. Teria sido o Mino o responsável, mais tarde, por levar Lula ao histórico comício das Diretas Já, no Vale do Anhangabaú, em São Paulo.
Passaria por outras iniciativas até fundar, em 1994, a CartaCapital título que ele jurava não ter nada a ver com seu sobrenome. A publicação logo consolidou uma imagem de alinhada à esquerda ao longo dos anos, a começar pela cobertura crítica que fez das privatizações no governo Fernando Henrique Cardoso e, depois, com o apoio explícito a Lula.
Em 2001, a revista, que começou mensal, se tornou semanal, com o propósito de disputar com as publicações de mesma periodicidade em voga no mercado à época. Hoje, a publisher é a filha do jornalista, Manuela Carta.
Em 2019, Mino perdeu aquele a quem definia como “o maior amigo que teve”, seu outro filho, Gianni Carta, aos 55 anos, em decorrência de um câncer. Dizia que, depois disso, Manuela virou “o homem da família” e o esteio da revista.
Chegou a repassar a ela uma herança que está com os Carta há gerações, desde seu avô: um relógio de algibeira com as inscrições em latim “nulla fluat cuius non meminisse velis”, algo como “não deixe que se passe uma hora sem que você queira se lembrar dela”.