JOÃO GABRIEL
BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS) – Um projeto de lei que tramita no Congresso e que flexibiliza o licenciamento ambiental pode, caso aprovado, influenciar a análise de pelo menos 80 mil empreendimentos no Brasil.
O número foi obtido pela Folha de S.Paulo a partir de levantamento dos processos em andamento (mais de 76,6 mil) nos estados somados aos procedimentos de nível federal (quase 4.000) de responsabilidade do Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis).
Atualmente no Senado e apoiado pela bancada ruralista, o projeto de lei busca alterar as regras para o processo de licenciamento ambiental em nível federal, estadual e municipal.
Ele regulamenta para todo o país a LAC (Licença por Adesão e Compromisso), um termo autodeclaratório de que o empreendimento está de acordo com as regras exigidas, e estipula prazos máximos para o andamento do processo.
Críticos afirmam que a LAC vai servir como um “autolicenciamento” e que o limite de tempo vai inviabilizar a análise de casos mais complexos. Defensores, por outro lado, dizem que a proposta vai desburocratizar os procedimentos e dará segurança jurídica para os empreendimentos.
Atualmente, cada estado tem leis próprias para o licenciamento. Segundo especialistas, estes procedimentos muitas vezes são problemáticos devido à falta de pessoal para realizar as análises necessárias, à pressão política ou à frouxidão das regras ambientais –a própria licença por adesão, por exemplo, já existe em alguns locais.
Não há uma sistematização comum, nem unicidade de critérios, e alguns estados espalham seus processos por mais de um departamento.
A Folha de S.Paulo procurou os estados desde o final de fevereiro e algumas gestões precisaram de mais de uma semana para conseguir somar quantos processos existem atualmente sob seu guarda-chuva.
Mesmo com quase um mês para disponibilizar a informação, os estados de Roraima, Bahia e Mato Grosso do Sul não disseram à reportagem quantos procedimentos estão em andamento no momento.
Eles também não responderam quando a Folha de S.Paulo perguntou o que justificava a não divulgação dos dados.
Todos os mais de 76 mil licenciamentos estaduais podem ser afetados caso o projeto de lei que flexibiliza os procedimentos seja aprovado no Congresso. Não foram contabilizados no levantamento da reportagem processos de nível municipal.
Suely Araújo, coordenadora de políticas públicas do Observatório do Clima e ex-presidente do Ibama, chama o projeto de “mãe de todas as boiadas” e diz que, se aprovado, ele pode causar um “liberou geral” para empreendimentos de impacto.
“Licenciamentos podem e devem ser racionalizados, para assegurar maior previsibilidade aos empreendedores, mas priorizar as dispensas de licença ambiental e o autolicenciamento está longe de ser o caminho adequado”, afirma.
Ela critica o fato de o projeto ampliar para todo o Brasil a LAC, que exime a necessidade de estudo ambiental para uma série de empreendimentos.
“Querem que a LAC passe a ser regra, não exceção. Se não há estudo prévio, não se analisam alternativas técnicas e locacionais, que são a alma da avaliação de impactos ambientais”, afirma.
O professor de análise de impacto ambiental da Escola Politécnica da USP (Universidade de São Paulo), Luís Sanchéz, afirma que a proposta pode, potencialmente, aumentar a disparidade na análise dentre os diferentes estados e municípios.
“O projeto de lei abre [a possibilidade de] que cada estado venha a definir quais tipos de projetos precisam de avaliação mais rigorosa e quais podem seguir caminho simplificado”, analisa.
Ele também ressalta que o efeito pode ser ainda maior sobre os procedimentos feitos pelas cidades. “É muito difícil acompanhar, porque eles ficam pulverizados, mas alguns estudos indicam que o licenciamento ambiental de âmbito municipal tende a ser menos rigoroso que em outras esferas. Não quer dizer que seja sempre, mas é uma tendência”, diz.
Salvo exceções –casos de fronteira, por exemplo–, os processos de licenciamento ambiental competem aos estados ou até a alguns municípios, a depender do local, como o Pará.
Araújo entende que definir a flexibilização em todo o território nacional pode aumentar o risco desse tipo de empreendimento.
“Casos como os rompimentos de barragens ocorridos em Mariana e Brumadinho provavelmente poderiam ser evitados com um acompanhamento mais vigoroso desses empreendimentos, que estavam ambos licenciados pelo órgão estadual de meio ambiente”, diz.
Sanchéz diz ainda que é favorável à ideia de dar maior segurança jurídica aos empreendimentos, como defendem os defensores do projeto, mas afirma que isso não pode atropelar as garantias ambientais.
Ele diz que o projeto não avança sobre questões de consulta aos povos e comunidades impactadas e, em alguns casos, ainda determina que este procedimento seja feito apenas ao fim do processo de licenciamento, limitando assim a possibilidade de que ele tenha efeitos práticos no empreendimento.
“Fica claro que o objetivo do projeto não é a compatibilização do desenvolvimento com a proteção ambiental, mas só melhorar a segurança jurídica dos empreendedores. Isso fica desbalanceado com os direitos das comunidades afetadas e os direitos das gerações futuras, que são a base da legislação ambiental”, afirma.
Na sua visão, a flexibilização das regras de licenciamento pode fazer com que deixem de ser analisados os impactos indiretos ou mais complexos dos empreendimentos, como no caso da BR-319, que além do impacto direto do asfaltamento, também pode facilitar o acesso, a partir da rodovia, para quem quer entrar na floresta para desmatar ou cometer outros crimes ambientais.