Era apenas mais uma família, na noite de anteontem, a caminho da ceia de Natal. Deixavam Belford Roxo, na Baixada Fluminense, onde moram, e iam para a casa de parentes em Itaipu, Niterói. Pouco antes das 21h, na Rodovia Washington Luís (BR-040), na altura de Duque de Caxias, o carro com cinco pessoas – e um adesivo onde se lê “Deus é fiel” no vidro traseiro – foi alvo de tiros disparados por agentes da Polícia Rodoviária Federal (PRF), que o perseguiam.
Ao volante, Alexandre da Silva Rangel, de 53 anos, foi atingido na mão esquerda. A seu lado, no carona, estava sua mulher, Deyse Rangel, de 49. No banco de trás viajavam dois filhos do casal, a agente de saúde Juliana Leite Rangel, de 26 anos, e seu irmão mais novo, de 17, além da namorada dele e de um cachorrinho.
Dos 30 tiros que a família diz terem sido desferidos contra o carro, um atingiu a cabeça de Juliana: ela está internada, em “estado gravíssimo”, segundo nota da prefeitura de Duque de Caxias, no Centro de Terapia Intensiva (CTI) do Hospital Municipalizado Adão Pereira Nunes.
No hospital, a médica intensivista Juliana Paitach confirmou que a situação da vítima é gravíssima, porém estável. Juliana já passou por cirurgia e segue no pós-operatório. Desde que foi atendida, não teve piora do quadro:
Em entrevista à Rádio CBN, Alexandre disse que os agentes da PRF atiraram contra o carro quando ele tentava encostar.
– Eu estava vindo na Washington Luiz, ligaram a sirene e eu liguei a seta para encostar e já foram metendo bala no meu carro. Acertou um tiro de fuzil na cabeça da minha filha. A bala que atingiu ela pegou no meu dedo. Meu carro todo cheio de bala, sem eu fazer nada. Ainda falaram que fui eu que atirei – afirmou. – A gente foi passar o Natal na casa da minha outra filha. Estávamos com a ceia toda no carro. Olhei pelo retrovisor, vi o carro da polícia e até dei seta para eles passarem, mas eles não ultrapassaram. Aí começaram a atirar, e falei para os meus filhos deitarem no assoalho do carro. Eu também me abaixei, sem enxergar nada à frente, e fui tentando encostar. O primeiro tiro acertou nela. Quando paramos, pedi para o meu filho descer do carro, então olhei para Juliana: ela estava desacordada, toda ensanguentada, tinha perdido muito sangue. Eles chegaram atirando como se eu fosse um bandido.
Deyse, mãe da jovem baleada, conta que os agentes da PRF só ensaiaram algum socorro após a intervenção de um policial militar: foi ele quem constatou que Juliana ainda estava respirando.
– Quando paramos, eles viram que fizeram besteira. Aí, do nada, uma patrulha da PM apareceu, perguntou o que estava acontecendo, e um policial pediu para checar a minha filha. Ele falou para mim que ela ainda estava respirando. Os agentes da PRF não fizeram nada, não tentaram socorrer, ficaram perdidos andando de um lado para o outro. Depois disso, eles botaram a Juliana no carro e a levaram para o hospital – lembra ela. – Vi a minha filha com a cabeça coberta de sangue. Eu me desesperei na hora, só sabia gritar. Fui para cima dele (agente da PRF) e falei: “Você matou a minha filha, seu desgraçado”. Ele deitou no chão, começou a se bater, pulando, mostrando que fez besteira.
Na manhã desta quarta-feira, os policiais rodoviários prestaram depoimento na divisão da Polícia Federal de Nova Iguaçu. Mais de 12 horas após o episódio, a PRF emitiu nota informando que a Corregedoria-Geral da corporação determinou a abertura de um procedimento interno. O documento também diz que os agentes envolvidos foram afastados “preventivamente de todas as atividades operacionais” e que a “PRF lamenta profundamente o episódio”. A PF determinou “a apreensão das armas para análise pela perícia técnica criminal”.
A decisão de afastar os agentes foi tomada pelo ministro da Justiça e Segurança Pública, Ricardo Lewandowski, ainda na noite de terça. Após ser informado sobre o caso, o ministro relatou a assessores que “as polícias federais têm a obrigação de dar o exemplo”.
Inconsolável, Deyse Rangel lembrou que a jovem baleada é conhecida por “fazer todos da família rirem”:
– A Juliana é única. Ela é a nossa alegria, uma filha maravilhosa. Ela é esforçada, trabalha como agente de saúde em Belford Roxo. Todo mundo sempre convida ela para as festas porque sabe que ela é felicidade pura. Com ela não tem tempo ruim, está sempre sorrindo, é querida por todos. Ela estava bem animada para o Natal, para o fim de ano, e agora está aqui no hospital.
Juliana Rangel entrou para a lista de tragédias provocadas por abordagens desastrosas de integrantes da PRF. No fim do ano passado, três policiais rodoviários se tornaram réus pela morte de Heloísa dos Santos Silva, de 3 anos, em 16 de setembro, após nove dias internada no mesmo Hospital Adão Pereira Nunes.
A criança foi baleada na cabeça quando o carro da família passava pelo Arco Metropolitano, na altura de Seropédica, durante a volta para casa, após um dia com parentes na cidade de Itaguaí. Os agentes Fabiano Menacho Ferreira, Matheus Domicioli Soares Viégas Pinheiro e Wesley Santos da Silva são acusados de homicídio consumado, quatro tentativas de homicídio e fraude processual.
Também em 2023, Anne Caroline Nascimento Silva, de 23 anos, foi morta durante uma abordagem da PRF na Rodovia Washington Luís, em junho. Na época, o agente Thiago da Silva Sá disse ter feito oito disparos em direção aos pneus do veículo após ouvir tiros durante uma perseguição. Já o marido da jovem relatou que os policiais ordenaram a parada do carro e atiraram antes que ele pudesse estacionar.
O procurador federal Eduardo Santos de Oliveira Benones instaurou Procedimento Investigatório Criminal (PIC) para apurar a conduta dos três agentes da PRF – dois homens e uma mulher-, que admitiram ter atirado no carro em que Juliana Leite Rangel viajava com a família. Benones, coordenador de Controle Externo da Atividade Policial, é responsável por investigar supostas irregularidades em ações de agentes das polícias federais.
Texto de: Vittoria Alves, Marcos Nunes, Vera Araújo e Bernardo Lima (AG)