POLÊMICA

Frei Gilson vira coqueluche da direita com discurso conservador e lives na madrugada

Frei Gilson já definiu a "guerra do sexo" como "ideologia pura" e lamentou o ato de "tirar uma criança do ventre de uma mãe".

Nos últimos anos, emergiram nas redes falas antigas ou recentes que o colocaram em alta conta com o segundo grupo. Frei Gilson já definiu a "guerra do sexo" como "ideologia pura" e lamentou o ato de "tirar uma criança do ventre de uma mãe".
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Cortar doce ou refrigerante “era a coisa mais fácil do mundo”. Era quaresma, e frei Gilson estava atrás de uma penitência que, de acordo com a tradição cristã, revigoraria sua fé naqueles 40 dias que antecedem a Páscoa.

“Preciso fazer algo que me custe mais e que me ajude a ser mais de Deus”, rememorou sua reflexão naquele pandêmico 2021, em entrevista à produtora Brasil Paralelo.

A resposta lhe pareceu óbvia de repente. “Eu amo dormir.” Forçou-se a acordar de madrugada e começou aí a fazer lives às 4h, algumas com mais de um milhão de visualizações no seu canal de YouTube são quase sete milhões de inscritos por lá, quase o dobro do que tem o padre Marcelo Rossi, um campeão de audiência do catolicismo brasileiro.

Desde 2022, Gilson da Silva Pupo Azevedo, 38, conquista uma média de 116 mil novos seguidores por mês na plataforma, segundo análise do Deltafolha. Outro levantamento, este da Palver, mostra que as citações ao religioso em grupos de WhatsApp e Telegram cresceram 1.000% durante o fim de semana passado.

Esse frade carmelita é bom de público e também de controvérsias, com assento garantido na janelinha das guerras culturais que racham a sociedade entre valores progressistas e conservadores.

Nos últimos anos, emergiram nas redes falas antigas ou recentes que o colocaram em alta conta com o segundo grupo. Frei Gilson já definiu a “guerra do sexo” como “ideologia pura” e lamentou o ato de “tirar uma criança do ventre de uma mãe”.

A maioria dos vídeos que grava não toca diretamente em temas políticos, mas vez ou outra eles se infiltram em seu discurso. Numa live promovida antes da eleição de 2022, com uma bandeira do Brasil em cena, ele e um colega, em dobradinha, fizeram uma oração que soou como canto gregoriano para ouvidos bolsonaristas.

Revezando-se na fala, a dupla pede livramento contra “o flagelo da ditadura” e “do comunismo”. “E não permitais, Senhor e Rainha de Nazaré, que os erros da Rússia venham assolar o Brasil”, disse Gilson certa hora.

A Polícia Federal incluiu seu nome na investigação sobre a tentativa de golpe associada ao ex-presidente Jair Bolsonaro (PL). O frei não é investigado, mas aparece citado por ter recebido a “oração do golpe” feita pelo padre José Eduardo de Oliveira e Silva, esse sim indiciado pela PF.

No sábado (8), Dia da Mulher, veio à tona um vídeo de 2024 em que Gilson defende, a partir de sua leitura bíblica, a submissão da mulher ao marido. “Deus fala que vai fazer uma auxiliar para o homem. Portanto, não é uma relação de disputa, é uma relação de comunhão”, afirmou à plateia feminina.

Evoca o Livro de Efésios, do Novo Testamento, para substanciar seu ponto. “Tô lendo a Bíblia para vocês. Quero todas lendo comigo bem alto: as mulheres sejam submissas aos seus maridos como ao Senhor, pois o marido é o chefe da mulher, como Cristo é o chefe da igreja.”

Diz ainda que o mundo tem lidado “com ideologias muito pesadas”, muitas delas plantadas por novelas vistas anos atrás. Não menciona quais nem cita uma emissora específica. “O que nós estamos vendo hoje é a briga dos sexos, é o homem brigando com a mulher, é a mulher brigando com homem para ver quem é o maior dentro da casa, quem manda mais.”

Ele investe também contra “essa lorota que a gente vê nesse mundo de hoje, a de que eu tenho a minha verdade, você tem a sua verdade, que nós temos que nos respeitar”. Diz na sequência que nunca desrespeitaria quem tem uma opinião contrária à dele, mas não a aceitaria. “Negar que existe uma verdade seria uma tolice nossa, uma mediocridade.”

Suas verdades foram prontamente tragada para a polarização política. Bolsonaro, que se declara católico como o frei, afirmou que, por juntar “milhões pela palavra do Criador”, ele “vem sendo atacado pela esquerda”.

O deputado André Janones (Avante-MG), representante desse campo, não discorda de Bolsonaro aqui. Vê “arrogância” dos pares, “mesmo com impopularidade e uma derrota cada vez mais real em 2026”. Postou no X: “Não basta ser rejeitado pelos evangélicos, vamos fazer uma cruzada contra os católicos também, aí a gente se elege só com o votos dos ateus em um país em que quase 80% da população é católica ou evangélica. Que tal?”.

O deputado Nikolas Ferreira (PL-MG), evangélico, também saiu em defesa de Gilson. “Nós sabemos que temos nossas divergências teológicas, mas isso não nos divide em relação ao amor a Cristo.”
O deputado Luiz Gastão (PSD-CE), presidente da bancada católica no Congresso, disse que “ataques ao frei Gilson em plena quaresma” vilipendiam “a todos nós cristãos”.

Gilson é ligado à ordem católica Carmelitas Mensageiros do Espírito Santo não os carmelitas originais, que surgiram no século 11, mas uma comunidade católica fundada em São Paulo em 2003.

Nem todo frei é padre, mas ele é. Estudou seis anos num seminário e foi ordenado sacerdote em 2013. É filiado à Diocese de Santo Amaro, a mesma do padre Marcelo Rossi, e já se disse “agressivo” no voto de pobreza sem ter conta bancária em seu nome, tudo o que ganha vai para seu grupo religioso, afirmou.

Professor de antropologia da UFRJ, Rodrigo Toniol reconhece que frei Gilson caiu no debate esquerda contra direita, “porque tudo acaba caindo”. Acha, contudo, que ele “é outra coisa” e tem mais a ver com movimentações tectônicas no campo religioso brasileiro.

“Ele não é um cara que está fazendo um projeto político do Brasil de maneira programática, é um cara do catolicismo devocional, com todo o seu conservadorismo característico”, diz.
Para Toniol, o fenômeno Gilson serve de alerta para a visão que impera sobre catolicismo nos últimos anos, como uma religião paulatinamente desidratada. “Tem algo de contraintuitivo aí. Como assim um frei mobilizou um milhão de pessoas às 4h para anunciar o início da quaresma?”

“O catolicismo não está morto. Mas aí vem a pergunta, que catolicismo é esse?”, questiona ele.

Certamente não é “o catolicismo de IBGE”, diz. “Ou seja, aqueles católicos que só falam para o IBGE que o são, mas não têm prática nenhuma.”

Frei Gilson também não representa o catolicismo institucional, “mais litúrgico”, segundo Toniol. “O que está em jogo é um catolicismo devocional. Muita reza, pouca missa, muito santo, pouco padre.”

Procurado pela Folha de S.Paulo, o religioso não quis falar. Segundo sua assessoria, está resguardado por causa da quaresma. As postagens em suas plataformas virtuais continuam.