Quem entra no site da farmácia de manipulação FSL Farma em busca de produtos usados para emagrecer e faz uma pesquisa pela semaglutida vai encontrar embalagens de cápsulas sublinguais, sem nenhuma referência ao Ozempic, o medicamento original patenteado pela Novo Nordisk. No site da Formulados Farma, outro estabelecimento de manipulação, aparece uma versão da tirzepatida, presente no original Mounjaro, da Eli Lilly.
A venda de versões manipuladas dos produtos conhecidos como agonistas GLP-1 tem gerado alertas de médicos que apontam riscos à saúde. Mas o problema ganhou contornos econômicos, com uma reação unificada da indústria farmacêutica, que passou a reclamar da concorrência das farmácias de manipulação.
Em maio, o Sindusfarma, sindicato representante de empresas do setor, enviou à Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) uma série de denúncias em que acusa várias farmácias de manipulação de atuarem ilegalmente na venda e no anúncio desse tipo de produto.
Segundo Nelson Mussolini, presidente do Sindusfarma, esses estabelecimentos estão praticando concorrência desleal e vendendo mercadorias sem os mesmos padrões de segurança e eficácia exigidos dos medicamentos que saem da indústria farmacêutica.
“Os fabricantes dos insumos de quem eles estão importando não têm as certificações que a indústria farmacêutica instalada no Brasil precisa ter para poder importar o produto. Eu preciso provar que o meu fornecedor é certificado, mas eles não precisam provar nada”, diz Mussolini, que estuda levar o caso à Justiça.
Para o sindicato, a Anvisa já não consegue fiscalizar a produção e a circulação dos manipulados.
“O Sindusfarma não está se colocando contra as farmácias de manipulação. O que se exige é que tenham as mesmas regras que a indústria farmacêutica precisa seguir”, diz Mussolini.
A Interfarma, que reúne algumas das maiores multinacionais de medicamentos com atuação no Brasil, defende a proibição total da manipulação desse tipo de produto.
Segundo a Interfarma, levantamentos recentes apontam um volume de insumos importados suficiente para fabricar de forma irregular 4 milhões de produtos com semaglutida e 2 milhões com tirzepatida de 5 mg, o que configuraria uma escala industrial não proveniente dos detentores das patentes.
Nos documentos que enviou à Anvisa, o Sindusfarma diz que muitas farmácias de manipulação estão trabalhando com produção em escala e fazendo propagandas “totalmente fora dos limites legais”, que podem ser encontradas na internet.
Segundo a entidade, esses estabelecimentos deveriam vender apenas produtos personalizados, feitos como uma alternativa, quando, por alguma especificação no tratamento de um paciente (por fatores como idade, peso, condição de saúde e outras peculiaridades), o remédio industrializado não puder ser indicado e precisar de adequações.
Outro problema apontado pelo Sindusfarma é a oferta de produtos com diferentes dosagens prontas. A entidade enviou à Anvisa imagens do site da empresa Biofarma que mostravam um pote de semaglutida com opções variando de 0,5 mg até 14 mg. “Constata-se que a compra direta no site da Biofarma e a escolha da miligramagem é opção do comprador e não da prescrição individualizada do médico”, diz a entidade no documento.
Procurada pela Folha, a Biofarma diz que não está ciente das denúncias e que tem boas práticas de manipulação. “Produzimos mediante pedido, de forma personalizada. Nunca tivemos nenhum tipo de produto produzido em larga escala, nem capacidade para tal nós temos. Somos uma farmácia pequena”, diz a empresa.
Em resposta por email à reportagem, a Biofarma reconhece que já teve semaglutida, mas o produto foi retirado de seu estoque. “Não temos ele [semaglutida] disponível para venda e não pretendemos voltar a comercializá-lo. Inclusive, não existe anúncio dele em nenhuma plataforma da nossa empresa”, afirma.
Em sites de manipulados como Citrus e Unic Pharma, as embalagens com rótulo de semaglutida aparecem como esgotadas.
A Formulados Farma diz que suas atividades seguem as normas. “Temos ciência da movimentação de setores da indústria farmacêutica no sentido de restringir a atuação das farmácias de manipulação. No entanto, acreditamos que há espaço para coexistência, desde que todos os segmentos sigam os preceitos legais e éticos”, afirma a empresa em nota.
FSL Farma, Citrus e Unic Pharma não responderam.
Para Renato Porto, presidente da Interfarma, a recente decisão da Anvisa que passou a exigir retenção de receita para a venda dos agonistas GLP-1 não resolve o problema. “Os riscos do uso desse produto nesse ambiente de manipulação são grandes, e nós entendemos que ele deve ser usado apenas com fabricação industrial. A farmácia de manipulação existe para fazer individualização de tratamentos, mas no caso desse medicamento não há motivo para individualizar”, diz ele.
A reclamação da indústria não se restringe aos emagrecedores. As denúncias do Sindusfarma citam outros produtos, especialmente de categorias mais populares, como a tadalafila, para disfunção erétil, e hormônios.reportagem, a Anvisa afirma que tem feito ações com órgãos de vigilância sanitária locais para fiscalizar farmácias e distribuidores de IFA (Insumos Farmacêuticos Ativos). O órgão diz que não pode compartilhar dados sobre tais ações porque ainda estão em curso.
“Há processos regulatórios em andamento na Anvisa nos quais estão sendo discutidas questões relacionadas à rastreabilidade dos IFA, aos riscos inerentes à manipulação de moléculas complexas e à atuação das farmácias no atendimento a instituições de saúde”, diz a agência.
Nessa semana, a Anvisa anunciou a proibição de lotes de semaglutida e tirzepatida para duas empresas de distribuição e importação após inspeção sanitária.
A Novo Nordisk, dona da patente de semaglutida no Brasil até 2026, afirma que não existem medicamentos manipulados, genéricos ou alternativos de semaglutida aprovados pela Anvisa e pelo FDA (agência reguladora americana).
“No caso da semaglutida, o que ocorre é a cópia exata do produto, o que caracteriza infrações de patente e sanitária. Além disso, para oferecer doses individualizadas e diferentes das já distribuídas pela Novo Nordisk, é necessária uma justificativa formal do médico prescritor e validação da Anvisa e da Novo Nordisk, que não foi procurada”, diz a fabricante em nota.
A molécula é base do Wegovy (semaglutida injetável 2,4 mg indicado em bula para tratar obesidade e sobrepeso com comorbidade), Ozempic e Rybelsus (injetável e em comprimido, respectivamente, indicados para diabetes tipo 2).
A Lilly, que tem a patente da tirzepatida, diz que não fornece o insumo para farmácias de manipulação, clínicas médicas, centros de bem-estar, varejistas online ou qualquer outro fabricante. “A Lilly continuará buscando medidas legais contra aqueles que falsamente alegam que seus produtos são Mounjaro ou tirzepatida aprovada pela Anvisa.”
*Texto de JOANA CUNHA