CÉZAR FEITOZA E JOÃO GABRIEL
BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS) – O comandante do Exército, general Tomás Paiva, afirmou a interlocutores que a Força punirá oficiais que comemorarem o aniversário do golpe militar nesta sexta-feira (31) ou participarem de eventos organizados por militares da reserva.
Segundo relatos feitos à reportagem, a orientação foi repassada a oficiais-generais. A principal preocupação está com os movimentos previstos entre reservistas no Rio de Janeiro.
Para isso, oficiais da Força ficarão atentos à movimentação no Clube Militar –grupo de integrantes da reserva que promoverá um almoço, no Rio, para celebrar o golpe de 1964.
O evento é convocado sob a alcunha “Movimento Democrático de 1964”, com ingresso a R$ 90 e restrito a sócios e convidados. Generais ouvidos pela reportagem afirmam que não é rara a presença de oficiais da ativa em eventos do Clube Militar, especialmente pelo fato de reservistas terem familiares na ativa.
A iniciativa de Tomás não decorre de orientação direta do ministro da Defesa, José Múcio Monteiro, mas foi tomada após decisão da pasta de manter-se em silêncio diante do aniversário do golpe de 1964.
Somente o plano de ignorar a data foi acertado entre Múcio e os comandantes Tomás Paiva (Exército), Marcos Olsen (Marinha) e Marcelo Damasceno (Aeronáutica), em conversas informais.
A pasta confirmou à reportagem que não emitirá notas sobre o dia. “O ministério não divulgará nenhum comunicado ou ordem do dia sobre a data”, disse a assessoria.
Integrantes da cúpula do Ministério da Defesa afirmam, sob reserva, que a decisão de ignorar a data foi a forma encontrada de evitar crises na data tanto com os militares quanto com o governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
O silêncio ainda é o meio-termo entre as comemorações à data, feitas nos últimos quatros anos sob o governo Jair Bolsonaro (PL), e a divulgação de comunicado em repúdio ao golpe militar, que, na avaliação da Defesa, poderia desgastar a relação de Múcio especialmente com oficiais de baixa patente.
Outras áreas do governo também têm decidido ignorar a data. O Ministério de Direitos Humanos, por exemplo, não emitirá nenhum comunicado em repúdio ao golpe militar no dia de seu aniversário.
Por outro lado, a pasta organizou nos últimos dias a “Semana do Nunca Mais”, programação com uma série de agendas voltadas à preservação da memória, da verdade e da justiça sobre o período da ditadura.
A semana teve como ápice a primeira sessão da Comissão de Anistia, nesta quinta, às vésperas do aniversário do golpe de 1964. No encontro, o colegiado reverteu pedidos de indenização negados pelo governo Bolsonaro, em julgamentos considerados injustos.
“Rechaçar os crimes e as violações de direitos humanos ocorridos na ditadura civil-militar brasileira não significa, portanto, criticar as Forças Armadas, mas apontar para um período da história que todos, sem exceção, devem deixar para trás”, afirmou o ministro dos Direitos Humanos, Silvio Almeida, durante o evento.
“E isso não se dará silenciando sobre este período, mas conhecendo-o profundamente para que não deixemos que se reproduza no presente, como hoje o faz por lamentáveis atos de violência e ameaças contra cidadãos e instituições democráticas.”
Após o retorno da Comissão de Anistia, o ministério articula agora a recriação da Comissão de Mortos e Desaparecidos, extinta por Bolsonaro.
As manifestações contra a ditadura também têm sido feitas pela EBC (Empresa Brasil de Comunicação), que planejou programação especial nesta semana para exibir filmes e organizar debates sobre o “verdadeiro caráter ditatorial do golpe militar de 1964”, segundo um de seus avisos.
“Entendemos que é importante que os que não viveram este período da história do Brasil conheçam os males causados pelos regimes autoritários e entendam os benefícios da democracia”, disse a EBC em nota.
Decisão rompe ordem de Bolsonaro
A decisão do Ministério da Defesa de ignorar o aniversário do golpe militar rompe um ciclo de quatro anos consecutivos em que, sob Bolsonaro, o governo comemorou a ditadura em comunicados oficiais.
Nos últimos quatro anos, o Ministério da Defesa publicou ordens do dia em celebração ao golpe militar de 1964. A comemoração foi uma ordem dada pelo ex-presidente.
“Nosso presidente já determinou ao Ministério da Defesa que faça as comemorações devidas com relação ao 31 de março de 1964 incluindo a ordem do dia, patrocinada pelo Ministério da Defesa, que já foi aprovada pelo nosso presidente”, disse em 2019 o então porta-voz da Presidência, general Otávio Rêgo Barros.
Depois disso, os então ministros Fernando Azevedo e Braga Netto divulgaram comunicados sobre o dia, que foram lidos nos quartéis e eventos militares marcados para 31 de março.
Em 2020, Azevedo escreveu que “o Movimento de 1964 é um marco para a democracia brasileira. Muito mais pelo que evitou”. E completou: “A sociedade brasileira, os empresários e a imprensa entenderam as ameaças daquele momento, se aliaram e reagiram. As Forças Armadas assumiram a responsabilidade de conter aquela escalada, com todos os desgastes previsíveis”.
Braga Netto, em 2021, foi ainda mais incisivo em sua manifestação. Ele disse que a ditadura militar merece ser “celebrada”. “O movimento de 1964 é parte da trajetória histórica do Brasil. Assim devem ser compreendidos e celebrados os acontecimentos daquele 31 de março”, finalizou o comunicado.
O Exército chegou a celebrar a ditadura de 1964 em comunicados oficiais, lidos em quartéis, antes do governo Bolsonaro. Nos primeiros mandatos de Lula, o comandante militar escreveu quatro manifestações em comemoração ao aniversário do golpe.
Em 2006, por exemplo, o comandante Francisco Albuquerque emitiu um comunicado para o Exército “orgulhar-se do passado”.
“O 31 de Março insere-se, pois na história pátria e é sob o prisma dos valores imutáveis de nossa Força e da dinâmica conjuntural que o entendemos. É memória, significado à época pelo incontestável apoio popular, e une-se, vigorosamente, aos demais acontecimentos vividos, para alicerçar, em cada brasileiro, a convicção perene de que preservar a democracia é dever nacional.”
À época, o ministro da Defesa Waldir Pires disse que respeitava a posição do comandante do Exército. “Não tenho nada a contestar à posição de quem interprete dessa forma [a exaltação ao golpe militar]. Tenho que respeitar a posição de cada um”, afirmou.
O Exército deixou de divulgar comunicados oficiais em comemoração ao golpe militar em 2007. Nos últimos 16 anos, as únicas citações oficiais foram feitas pelo Ministério da Defesa.
Logo após assumir a Presidência, em 2011, Dilma Rousseff (PT) determinou que as Forças Armadas não citassem a ditadura militar nas ordens do dia. Naquele ano, o Exército chegou a vetar uma palestra do general Augusto Heleno que seria realizada em comemoração ao golpe.