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Da proclamação aos desfiles militares, nacionalismo brasileiro teve mudanças

Independência ou Morte (1988): obra de Pedro Américo reproduz declaração da Independência

FOTO: reprodução
Independência ou Morte (1988): obra de Pedro Américo reproduz declaração da Independência FOTO: reprodução

Cintia Magno

A imagem da bandeirinha do Brasil tremulando nas mãos da população que, aglomerada, acompanha o desfile que toma as principais avenidas do Brasil é historicamente associada às comemorações da Independência do Brasil, proclamada em 07 de setembro de 1822. Junto à programação oficial que ainda marca o feriado em diferentes capitais brasileiras, o sentimento atribuído é o de nacionalismo e amor à pátria.

Diferente do que ocorreu na maior parte da América, no Brasil a independência se deu não a partir de uma declaração, mas sim de uma proclamação, onde, às margens do Rio Ipiranga, o então príncipe regente D. Pedro I proclama a independência. Os desdobramentos que sucederam o episódio que ficou conhecido como o Grito do Ipiranga até os dias atuais demonstram como o sentimento de patriotismo foi construído ao longo dos anos.

A historiadora e professora da Faculdade de História da Universidade Federal do Pará (UFPA), Magda Maria Oliveira Ricci, lembra que, de forma prática, o que ocorreu após a Proclamação da Independência foi um racha entre poderes da época nas respectivas províncias que compunham o então Reino Unido de Portugal e Brasil. “De prático, o que Pedro I faz é mandar um ofício para Lisboa e para o pai dele [o Rei de Portugal, Dom João VI] avisando que, a partir daquele momento, ele não era mais o Príncipe Regente em nome do Dom João VI e que passou a ser, a partir daquele momento, o Imperador do Brasil. Então, era um ato de rebeldia e era, ao mesmo tempo, uma proclamação de independência bastante ímpar na história das independências”.

Principal ministro do Dom Pedro I, José Bonifácio é encarregado de enviar cópias desse ofício tanto para presidentes de província, que eram os governadores de então, quanto para as câmaras de vereança, mas a reação das autoridades a esse informe não foi homogênea em todo o Brasil.

Na Província do Pará, o presidente de província era o general português José Moura, que foi contra a adesão à independência do Brasil, assim como a câmara de vereança, embora parte das câmaras dos vereadores, em especial o padre Batista Campos e o seu grupo, estivessem mais inclinados à independência. Mesmo antes da Proclamação da Independência por Dom Pedro I já haviam movimentos que pediam a Independência no Pará, como a grande Revolução dos Soldados em Muaná, no Marajó, porém, naquele primeiro momento, esses movimentos não deram certo.

Independência ou Morte (1988): obra de Pedro Américo reproduz declaração da Independência
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PATRIOTISMO

Em meio a esses conflitos, Magda lembra que o que foi proclamado em 7 de setembro foi a criação de um estado separado, um território que viria a ser governado a partir do Rio de Janeiro e não mais a partir de Lisboa, em Portugal. Então, a historiadora considera que não se cria, imediatamente, um sentimento patriótico, mas a intenção desse sentimento já existia. “Dom Pedro I mesmo fez alguns movimentos para fazer isso mudar. Por exemplo, ele alterou as datas cívicas, instituindo que as maiores datas cívicas, além do 7 de setembro, deveriam ser o Dia do Fico – que é quando ele resolveu ficar, antes da Proclamação da Independência – e o próprio aniversário dele, 12 de outubro”.

Dom Pedro I também promove mudanças na bandeira e, em seguida, faz a letra do hino do Brasil, que naquela época era o que hoje é o hino da Independência. “Na bandeira ele muda as cores para o verde e amarelo e dentro tem um brasão que era parecido com o português, mas que tinha uma série de simbologias brasileiras, então, essas coisas já nasceram na época da independência”, considera Magda Ricci.

“É importante notar que o atual significado da palavra ‘patriota’, por exemplo, nasce com a Revolução Francesa, depois de 1789. Entre 1789 e 1820, no Império Português, pátria significava duas coisas: amar o rei e amar a igreja, porque a Monarquia era católica. Qualquer coisa fora isso era rebelião, motim, conjuração, eram patriotas desviados”.

Já quando se tem a Independência do Brasil, a palavra patriotismo se atrela a um outro conceito, o de ter uma lei máxima, uma constituição. Então, naquele momento, ser patriota era ser constitucionalista. “Esse sentimento de ‘todo mundo junto’ tentou-se, mas foi um grande fracasso, tanto que em 1831 o Imperador abdica e todo mundo achava que o Brasil ia virar, como virou a América Latina, vários países separados, cada um brigando por uma parte do território”, explica. “Foi com o Pedro II que se conseguiu essa nova união e muitos historiadores acreditam que a ideia de uma nação nasça a partir do Segundo Reinado, depois de 1840. Outros já acreditam que essa ideia só se solidificou mesmo depois da Guerra do Paraguai, quando todo mundo lutou contra o inimigo, que no caso era o Paraguai”.

DESFILES

No que se refere à tradição dos desfiles de 7 de setembro, Magda Ricci aponta que até existiram algumas manifestações de rua em decorrência da Proclamação da Independência, em 1822, mas os desfiles começam a se tornar mais populares apenas em 1831, justamente quando o Imperador Dom Pedro I abdica. A associação mais próxima dos desfiles com o Exército só de dá a partir do fim da Guerra do Paraguai, em 1870, quando o Exército e a Marinha vão para as ruas para comemorar o resultado do conflito. Já no século XX, outros acontecimentos acabam também reforçando a importância de tais desfiles: as ditaduras vivenciadas no país.

“Depois da Primeira Guerra Mundial, a partir de 1918, e da Segunda Guerra Mundial, em 1945, isso se tornou muito forte, praticamente uma obrigação”, aponta a professora. “Então, o patriotismo vai ser muito construído e, com as ditaduras que nós vivemos – a Varguista de 1937 a 1945 e depois a Militar de 1964 até 1988/1989 – há um reforço muito grande das figuras dos grandes homens nos desfiles cívico militares”.

Para a cientista política e professora universitária Karen Santos, o maior atrelamento dos desfiles e da noção de patriotismo à imagem das Forças Armadas é fruto de uma construção. Porém, não se deve esquecer que há diferença entre patriotismo, nacionalismo e parada cívico-militar. “Quando a gente olha para o que se tornou o 7 de setembro no Brasil, a gente observa que houve uma apropriação de um movimento civil pelos militares. É uma construção de uma narrativa, principalmente por conta da República, já que aqueles que declaram a República são militares e que por muito houve uma mistura entre esse perfil das Forças Armadas com as tomadas de decisão políticas”.

Nesse sentido, é natural considerar que a ideia de patriotismo mudou ao longo dos anos e, para a cientista política, acabou muito influenciada por uma ideia de que o patriotismo resgataria uma era de ouro, mas que nunca existiu. “Então, houve no decorrer do tempo, uma mudança significativa em relação a esse patriotismo porque ele acaba se escancarando com demandas de grupos que querem não mais uma política progressiva, mas querem conservação”, analisa.

A professora considera, ainda, que, por si só, o termo patriotismo é controverso, possibilitando diferentes interpretações. “O que a gente vê, hoje, é que no contexto de acirramento político o termo patriotismo é utilizado como uma espécie de verniz para legitimar uma liberdade de expressão que nega o direito de novas identidades. Então, você acaba trazendo o discurso da ideia do pátrio poder, do poder patriótico ou do patriotismo como uma forma de negar a existência política, a existência social, a existência jurídica de grupos que não se conformam com as regras que estão aí, com os valores éticos que estão aí”.

Karen considera, ainda, que os últimos acontecimentos, principalmente o 08 de janeiro, foram emblemáticos ao deslegitimar grupos que traziam, no discurso, o patriotismo e o nacionalismo como bandeiras, mas que, na verdade, depredaram justamente alguns dos símbolos desse patriotismo. “O 7 de setembro é um momento familiar, de reencontro, das famílias irem ver os seus filhos desfilando, e é muito complicado você romper com uma lógica familiar do Brasil, já que é ela a organização primária da vida”.