TEXTO: IGOR GIELOW/SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS)
Se adaptar obras é um esteio do cinema, como o Oscar para a categoria denota, a prática muitas vezes exprime esgotamento criativo. Isso é particularmente verdadeiro no caso dos filmes de terror ou fantasia, que abusam do recurso com grande frequência.
Tome-se o livro “Drácula”, publicado há 126 anos pelo irlandês Bram Stoker, do qual já foi tirado todo o sangue e um pouco mais, com o perdão da gracinha. Segundo contagens imprecisas, há qualquer coisa entre 80 e 200 títulos de filmes baseados em alguma medida na figura do conde transilvano, para não falar em uma miríade de vampiros outros.
O cânone do gênero inclui da primeira adaptação bastarda do romance original, “Nosferatu”, dirigido por F. W. Murnau em 1922, o mais influente filme de horror da história, além do Drácula de fraque vivido, digamos assim, por Bela Lugosi em 1931, além do monumento Christopher Lee, que envergou a capa preta sete vezes a partir de 1958.
Menções mais do que honrosas vão para os condes de Frank Langella de 1979 e de Gary Oldman, de 1992. Em todos os casos, contudo, falamos de variações do arco narrativo do vampiro (literalmente) quatrocentão que sai de seu castelo ermo para a Londres de 1897, então o centro da civilização ocidental, para atualizar o cardápio.
Com versões mais ou menos fiéis ao livro original, sobraram restos para diretores inventivos, que se viram com o que têm. É o caso de “Drácula – A Última Viagem do Demeter”, que estreia nesta quinta (24) no Brasil.
Sua premissa é instigante, dado que a cargo de André Ovredal, norueguês que realizou filmes interessantes de horror, gênero usualmente olhado com esgar pela crítica, como “O Caçador de Troll”, de 2010, e “Histórias Assustadoras para Contar no Escuro”, de 2019, esta também uma adaptação literária.
Nem tão original, mas com começo, meio e fim
A ideia foi expandir o trecho do livro de Stoker em que ele narra a viagem de Drácula da Romênia para o Reino Unido. Na surrada cópia em inglês ao meu lado, o “Diário do Capitão” da escuna russa Deméter, que dá título do filme, ocupa meras cinco páginas e meia em 520 (contando notas e introdução). Longe de ser um “capítulo” com a “origem da lenda de Drácula”, como diz a propaganda, é o anexo de uma reportagem citada no romance epistolar.
Transformar isso em duas horas de entretenimento sangrento é um desafio, com sucesso apenas parcial de Ovredal. Ele não pariu um desastre, como no recente “Renfield”, de Chris McKay, em que a atualização de um recorte da história sobre o escravo de Drácula virou um pastiche sem sentido.
Em “Deméter”, há começo, meio e fim, embora a ideia em si não seja tão original: a série feita pela BBC com a Netflix em 2020 sobre o conde teve seu segundo episódio imaginando a mesma viagem. Como nela, um esforço fracassado, há uma ambientação primorosa. É pouco, mas salta aos olhos ante a mesmice da computação gráfica atual.
As coisas complicam mais quando o norueguês precisa tomar a decisão principal: obedecer à regra de “Tubarão”, segundo a qual não se mostra quase nada do monstro até o clímax, ou ceder ao fato de que todos que se dispuseram a ir ao cinema tendem a saber do que ele se trata.
Apesar de ter dito que queria fazer “um ‘Alien’ num navio”, Ovredal falha. O seu Deméter é um espaço racional, organizado, sem a angústia opressiva da nave Nostromo do filme de 1979 de Ridley Scott que buscou emular. Para ficar no registro marítimo, “Mestre dos Mares”, de Peter Weir, seria a régua a perseguir.
Ovredal também prometeu “o mais assustador filme de ‘Drácula’ já feito”. Mas os ataques do vampiro aderem ao módulo moderno de zumbis: personagens cambaleantes que se tornam corredores de maratona em segundos. Repetitivos, causam mais fastio do que apreensão, apesar da considerável quantidade de sangue e tripas na tela.
E há o Drácula em si. Historicamente, há aqueles vampiros inspirados no pioneiro Nosferatu de Max Schreck, uma besta humanoide com aspecto brutal, os aristocráticos e sedutores da estirpe de Lugosi, e um misto das duas coisas, como o de Oldman. O de Ovredal fica no primeiro time, mas frustra o espectador ao revelar suas feições pouco buriladas já com 15 minutos de filme.
Faltou seguir a regra de “Tubarão”
Saudade da regra de “Tubarão”, levada ao paroxismo no primeiro “Alien”. O ator que encarna o vampiro aqui, o espanhol Javier Botet, é uma certa lenda no circuito do horror por sofrer de síndrome de Marfan, uma condição que o deixa magérrimo, aos 56 kg, alto, com quase 2 metros, e com uma flexibilidade quase inumana.
Assim, ele já foi até modelo para um alienígena do mesmo Scott em “Alien: Covenant”, de 2017, entre outros bichos, inclusive o realmente pavoroso cadáver sem dedão de “Histórias Assustadoras” de Ovredal. Agora, contudo, a impressão é mínima.
No elenco, salva-se com louvor David Dastmalchian, que transmite gravidade como imediato do navio. Já os dois heróis da narrativa, um médico negro vivido por Corey Hawkins e a camponesa romena de Aisling Franciosi, são passáveis, mas unidimensionais.
Nenhum dos dois está no livro, o que não seria um problema em si assim como no caso do neto do capitão incluído no filme, mas a inserção deslocada de um monólogo sobre racismo e cenas de empoderamento feminino sugerem um pedágio forçado aos tempos atuais para uma história vitoriana.
Se não passa vergonha, Ovredal fica em um débito que o fraco desempenho do filme nas bilheterias americanas comprova até aqui. Talvez seja para melhor: o final sem conexão com o livro do filme sugere, como é irritantemente comum, a ideia de uma sequência, não raro o túmulo (ops) da criatividade de um diretor.
DRÁCULA: A ÚLTIMA VIAGEM DO DEMÉTER
Avaliação Regular
Quando Estreia nesta quinta (24), nos cinemas
Classificação 16 anos
Elenco Javier Botet, Corey Hawkins e Liam Cunningham
Produção EUA, 2023
Direção André Ovredal