Agência O Globo
Uma cartilha distribuída para os funcionários dos Correios trata “conduta inconveniente” com “comentários de duplo sentido” e “olhares sedutores” como atos que não podem ser classificados como assédio sexual. Da mesma forma, uma “proposta sexual” também não caracteriza assédio desde que seja “feita sem insistência”, segundo o texto.
As orientações estão no material institucional “Prevenção e enfrentamento à violência no trabalho”, disponível para os trabalhadores dos Correios por meio da rede interna da empresa. O documento é datado de outubro de 2022, mas só veio à tona agora, sob a gestão do presidente interino Heglehyschynton Marçal.
O texto argumenta que a “conduta inconveniente numa festa de trabalho, na qual um colega ou chefe, após algumas doses a mais, faz comentários de duplo sentido e lança olhares sedutores” não configuram assédio sexual “salvo se houver alguma ameaça concreta”. Mesmo nessa hipótese, o texto condiciona o assédio à circunstância de essa “ameaça concreta” ser “posta em prática mais tarde”.
A cartilha também menciona como ações isentas de serem enquadradas como assédio sexual atos como “flerte ou paquera”, “meros galanteios” e “proposta sexual feita sem insistência e sem ameaça ou pressão”.
O material incomodou parte dos funcionários dos Correios. O sindicato dos trabalhadores da empresa no Rio Grande do Sul publicou nota na qual exige a retirada da cartilha e a responsabilização dos autores do conteúdo. Para a entidade, o documento “reforça a naturalização social de comportamentos machistas” e ensina um passo a passo de como descaracterizar a violência ao assediar colegas sexualmente.
“O material não é apenas mal feito, é uma agressão a todas mulheres e homens que lutam diariamente contra a violência e o assédio, contra todas as vítimas que já sofreram e sofrem com o descrédito social em busca de justiça”, diz o texto divulgado pelo sindicato.
De acordo com o secretário-geral do sindicato, Alexandre dos Santos Nunes, a entidade denunciará a atual gestão dos Correios às autoridades caso o material não seja retirado do ar.
Sócio e presidente da consultoria Mesa Corporate Governance, especializada em governança corporativa, Luiz Marcatti afirma que os códigos de conduta ditam exatamente o que pode ou não ocorrer no ambiente de trabalho e nas relações entre os funcionários de uma empresa. Especialmente no caso de assédio sexual, os códigos devem ser “rígidos, bem explicados e não podem deixar margem para interpretações”, como foi o caso dos Correios, diz ele.
– Está permissivo do jeito que foi escrito. Dá muita margem para interpretação, o que torna o ambiente da empresa inseguro e a expõe a riscos, inclusive, jurídicos e de reputação – afirma Luiz. – Com um código escrito desta maneira, que funcionária vai se sentir segura para denunciar uma situação de assédio para a ouvidoria ou outro canal interno de tratamento de problemas? – questiona.
Heglehyschynton Marçal foi nomeado para os Correios durante o governo de Jair Bolsonaro e ascendeu à posição de presidente interino da empresa em 1º de janeiro, ao fim da gestão do ex-chefe do Executivo federal. Ainda não está definido quem assumirá o cargo no governo de Luiz Inácio Lula da Silva.
Em curta manifestação enviada à reportagem, os Correios informaram que “o referido material está sendo revisado”.
No governo Bolsonaro, o então presidente da Caixa Pedro Guimarães renunciou ao cargo após uma série de denúncias de assédio sexual e moral. Em outubro, a corregedoria da Caixa concluiu sua investigação sobre o episódio apontando fortes indícios de assédio moral e sexual. Foram reunidos mais de 50 depoimentos de vítimas e testemunhas.