Mudanças na legislação de armas colocadas em prática por meio de decretos, portarias e resoluções nos últimos três anos modernizaram e ampliaram o armamento do crime organizado. É o que apontam resultados preliminares de um estudo do perfil das armas do crime no Sudeste , que investiga marcas, nacionalidade, tipo e calibre das armas de fogo apreendidas pelas polícias nestas regiões e será lançado pelo Instituto Sou da Paz nos próximos meses. Acesse a nota técnica.
Em pesquisas anteriores sobre os perfis de armas usadas pelo crime organizado nos estados do Sudeste produzidas pelo Instituto, já era possível perceber a substituição gradativa de armas curtas e de porte mais antigas como revólveres e garruchas (arma de ação simples, um tiro por cano) por armas semi-automáticas como pistolas. Os dados mais recentes, no entanto, mostram que houve nos últimos anos uma aceleração neste processo de aumento de armas mais potentes nas mãos de criminosos. Na prática, entre 2019 e 2022, o crime vem substituindo armas mais antigas e de calibre mais baixo por armas mais novas e mais potentes.
“O que estas análises preliminares evidenciam é que mexer nas regras de acesso à armas no mercado legal traz impacto no mercado ilegal, e por isso deveriam ser precedidas por análises técnicas, algo que o Governo Bolsonaro nunca se preocupou em fazer”, diz Bruno Langeani, gerente de projetos do Instituto Sou da Paz.
O estudo inclui dados de São Paulo e Rio de Janeiro, estados que concentram 17% da apreensão de armas de fogo no país e são locais de origem de facções criminosas com expressão nacional. Para a análise, foram utilizados microdados enviados ao Instituto Sou da Paz por órgãos oficiais dos estados de São Paulo e Rio de Janeiro, solicitados via Lei de Acesso à Informação e foram analisados dados do período de janeiro de 2017 a agosto de 2022 para os dois estados.
O período de 2019 a 2022 é marcado por aumento da participação de armas com maior potencial ofensivo. Entre o total de armas apreendidas, a parcela de fuzis subiu 50% em SP e 16% no RJ, enquanto a de pistolas aumentou 31% em SP e 32% no RJ.
Na primeira edição do relatório de armas do Sudeste, realizada com dados de 2014, em São Paulo os revólveres eram metade de todas as armas apreendidas (51%), em 2017 ainda estavam com 44,6%, em 2018 a queda de participação se acentua e em 2022 chega ao menor registo da série histórica, 40%. Em sentido oposto, as pistolas que em 2014 eram 27,8% hoje chegam a 34,2%.
No Rio de Janeiro, as pistolas já haviam ultrapassado os revólveres em 2016, mas a diferença da participação entre elas nas apreensões se distanciam fortemente primeiro em 2018 e depois em 2022. Hoje, este tipo de arma semi-automática atinge impressionantes 54,2%, apresentando uma presença muito maior dentro do total de armas apreendidas, se distanciando do percentual de revólveres.
Nesta análise dos tipos, percebe-se um crescimento dos fuzis no mercado criminal , ainda que em menor escala que a das pistolas, também com comportamento de crescimento semelhante nos dois estados. O recorde da participação de fuzis nos dois estados se dá no período de gestão do Governo Bolsonaro (2019 para o RJ e 2020 para SP).
Em 2022, com mais armas em mãos de civis e armas mais potentes (que antes não estavam liberadas para este grupo) é esperado que o fluxo de migração delas do mercado legal para o ilegal aumente em tamanho, e agora também em periculosidade.
Na avaliação do Instituto Sou da Paz, para além dos desvios envolvendo cidadãos que acreditaram que poderiam comprar armas para se defender, mas tiveram suas armas furtadas ou roubadas, as mudanças na legislação de controle de armas, que também revogaram e reduziram mecanismos de fiscalização fundamentais para prevenir desvios, incentivaram um novo esquema criminoso de uso de laranjas (pessoas sem antecedentes criminais) para comprar armas legalmente e depois repassar para facções criminosas.
Trata-se de um resultado concreto e muito nocivo ao país, comprovado tanto pelos casos emblemáticos noticiados pela imprensa, mas, sobretudo, pelos dados de apreensões analisados na presente nota técnica, que mostram como mudou o perfil da arma usada no crime em SP e RJ, com armas muito mais modernas e potentes sendo apreendidas pelas polícias.
“Sabe-se que é impossível eliminar totalmente o mercado ilegal, então como regra os governos buscam atuar para limitar o mercado de armas mais potentes, e criar barreiras para dificultar os desvios de armas, de modo a aumentar seu preço no mercado criminal. O absurdo do caso brasileiro é que temos um governo trabalhando fortemente para criar novas brechas de esquemas para desvios, baratear e aumentar oferta de armas e precarizar os mecanismos de controle, o que é algo difícil de entender para os que se preocupam com a redução do crime”, completa Langeani.
Fonte: Instituto Sou da Paz