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Alcoólicos Anônimos completa 90 anos e se fortalece com novos grupos

Prestes a completar 90 anos em junho, o Alcoólicos Anônimos (AA) é uma irmandade com presença em 180 países que reúne pessoas dispostas a compartilhar experiências.

Prestes a completar 90 anos em junho, o Alcoólicos Anônimos (AA) é uma irmandade com presença em 180 países que reúne pessoas dispostas a compartilhar experiências
Prestes a completar 90 anos em junho, o Alcoólicos Anônimos (AA) é uma irmandade com presença em 180 países que reúne pessoas dispostas a compartilhar experiências. Foto: Divulgação

Com o copo numa das mãos, cambaleando e falando de maneira enrolada, agressiva e reativa. Foi assim que Heleninha Roitman, personagem de Paolla Oliveira em “Vale tudo”, apareceu em sua primeira cena embriagada. Alcoolista, ela expôs ali uma realidade que milhões de pessoas conhecem bem: uma doença incurável e sempre vista com muito preconceito. Prestes a completar 90 anos em junho, o Alcoólicos Anônimos (AA) é uma irmandade com presença em 180 países que reúne pessoas dispostas a compartilhar experiências e se apoiar com o objetivo de se manterem sóbrias. No Brasil, começou a funcionar em 5 de setembro de 1947, no Rio de Janeiro, numa sala da Associação Brasileira de Imprensa (ABI), no Centro. Hoje, no estado, há cerca de 400 grupos e 1.430 encontros são realizados de forma presencial e on-line por semana.

Foi justamente nessas reuniões que Paolla buscou inspiração para viver Heleninha. Sóbria, a artista plástica tem um temperamento calmo e doce. Mas, ao consumir álcool, torna-se uma pessoa descontrolada e sem limites, que surge envergonhada quando o efeito da bebida passa.

– A Heleninha traz à tona a pergunta: por que ela bebe se tem dinheiro? É preciso esclarecer que o alcoolismo é uma doença crônica sem cura, como diabetes e hipertensão. Não escolhe classe financeira, nível acadêmico nem profissão – diz a psicóloga Gabriela Henrique, que foi vice-presidente do AA do Brasil entre 2022 e 2024 e atualmente é voluntária.

O AA não faz estatísticas. Mas, de acordo com a entidade, é possível notar um crescimento de mulheres a partir da pandemia de Covid-19 e o consequente isolamento social, em 2020. O reflexo foi um aumento de 41% no número de reuniões exclusivamente femininas em todo o Brasil. No Rio, são atualmente 12 por semana, entre presencial e on-line.

– O AA foi uma reformulação de vida. No programa dos 12 passos, apenas o primeiro fala de álcool. Todos os outros são de reformulação – conta uma empresária carioca de 54 anos.

A trajetória no Alcoolismo

Ela bebeu pela primeira vez aos 14 numa rodinha na Praia de Ipanema, na Zona Sul do Rio, onde todos consumiam cachaça com limão. Ali tomou o primeiro porre. Ao longo dos anos, o consumo de álcool foi se intensificando. No começo, era às sextas, aos sábados e aos domingos. Depois, passou a ser diário. O primeiro alerta de que a situação estava fora de controle veio do irmão, quando ela tinha 26 anos.

– Era uma terça-feira e eu tinha saído para comprar um sofá. Meu irmão ligou e eu estava de porre. Ele me disse que eu estava com um problema e tinha que procurar o AA. Fui e o que vi foram homens muito mais velhos. Não me identifiquei. Saí de lá e fui beber para comemorar que não era alcoólatra – ironiza.

Os anos foram passando e o quadro só se agravou. A empresária começou a tomar o primeiro gole ainda de manhã, para controlar os tremores das mãos. Teve alucinações e passou por internações. Até que aconteceu o que ela chama de despertar:

– Aí voltei ao AA. Vou completar 15 anos este ano. Me reformulei, resgatei minha fé.

O apoio feminino e a busca por ajuda

As reuniões femininas já existem desde 2012, quando se percebeu que algumas mulheres poderiam se sentir discriminadas e excluídas ao participarem dos encontros mistos. Para Gabriela Henrique, é uma forma de tornar os encontros mais acolhedores.

– Muitas mulheres, durante o uso do álcool, são estupradas, por exemplo. Diante de tanta fragilidade, talvez haja um constrangimento. Então, nesse tipo de reunião a experiência é de mais identificação de uma mulher com a outra .

No Rio, o grupo de AA mais antigo fica em Copacabana, na Zona Sul, mas é possível saber onde ficam os demais no site aa.org.br. É no endereço on-line que também estão disponíveis 12 perguntas que devem ser respondidas por quem quer ter certeza de que deve procurar uma reunião – lembrando que os encontros são abertos para todos, sem exceção, e há sempre um acontecendo, seja presencial ou remotamente.

A universitária carioca Andrea (nome fictício), de 23 anos, teve contato com o álcool pela primeira vez aos 13. Aos 15, fez uma identidade falsa para conseguir comprar bebidas alcoólicas. No seu caso, diz, o alcoolismo foi progredindo muito rapidamente.

– Eu bebia antes, durante e depois das festas. Virava noites. Passei a beber nos dias de semana. E na pandemia emburaquei. Mas não me via como alcoólatra, já que bebia de quarta a domingo – conta ela, que foi à sua primeira reunião do AA em 6 de junho de 2021, quando entendeu que precisava de ajuda. – No início foi difícil. Mas fui tão bem acolhida que voltei no dia seguinte. Ouvi outras pessoas e comecei a me identificar. Continuei voltando. Até que chegou o primeiro fim de semana sem ressaca. Voltei a praticar esporte. Voltei a ler. Passei momentos difíceis na recuperação, relacionados à saúde e à família. E o grupo sempre comigo. (Outros membros) me davam amor. Esse amor me salvou de mim mesma.

Além das reuniões femininas, outras de composições especiais foram surgindo ao longo dos anos, como as voltadas a negros, povos indígenas e população LGBTQIA+. Isso não significa, no entanto, que participar de um desses grupos inviabilize frequentar outros encontros, como os mistos. Além disso, enfatiza Gabriela Henrique, quem sentir vontade de recorrer ao álcool por qualquer motivo pode entrar no site do AA e procurar o grupo mais próximo. A Linha de Ajuda da entidade no Rio é (21) 2253-3377.

A psicóloga também explica por que, em “Vale tudo”, Heleninha é chamada de alcoolista e não alcoólatra. Segundo ela, embora sejam sinônimos, a mudança foi adotada porque o termo alcoólatra já vinha sendo visto de maneira pejorativa e distorcida – neste último caso, associando o transtorno a um determinado grupo de pessoas, como moradores de rua e frequentadores de bares.

Texto de: Ana Carolina Torres