A arqueologia
brasileira realizou, nas últimas décadas, uma “pequena revolução”. A expressão
é do arqueólogo Eduardo Góes Neves, diretor do Museu de Arqueologia e Etnologia
da Universidade de São Paulo (MAE-USP). E a revolução a que ele refere se deu
exatamente em seu campo de estudo: a Amazônia. Desmentindo a falácia
transformada em slogan pela ditadura militar, de que a Amazônia seria uma terra
sem gente para uma gente sem terra, sua linha de pesquisa revelou que a região
já foi densamente povoada, por 8 a 10 milhões de pessoas, e que esse povoamento
remonta há, no mínimo, 8 mil anos, talvez bem mais do que isso.
Frutos de uma pesquisa de mais de 15 anos, sempre conduzida
com auxílios da FAPESP, as conclusões de Neves foram apresentadas agora em um
livro acessível aos leitores não familiarizados com a linguagem técnica da
arqueologia: Sob os tempos do equinócio: oito mil anos de história na Amazônia
Central (Editora Ubu). O livro foi publicado com apoio da FAPESP.
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“Ao contrário do que diz a cronologia oficial, que remonta o
início da história do Brasil à chegada dos colonizadores europeus, em 1500, o
território que compõe atualmente o país tem uma história muito antiga, de
aproximadamente 12 mil anos. A arqueologia descobriu que, nesse longo período,
a Amazônia sempre foi uma região densamente povoada. Fragmentos de artefatos
encontrados sob florestas supostamente virgens, geoglifos e a chamada terra
preta são sinais importantes dessa encorpada presença humana na região”, relata
Neves à Agência FAPESP.
Os fragmentos de artefatos incluem peças de cerâmica
bastante sofisticadas, que nada ficam a dever a outros produtos das culturas
pré-colombianas. Os geoglifos, que são estruturas geométricas feitas no chão
pela disposição organizada de sedimentos ou pela retirada de sedimentos
superficiais, de modo a expor o terreno subjacente, foram identificados às
centenas no Amazonas, Rondônia, Acre e Bolívia. E a terra preta, formada pela
atividade humana nas áreas de seus antigos assentamentos, compõe hoje os
terrenos mais férteis da Amazônia, cujo solo original é naturalmente pobre.
“Na Amazônia não existe abundância de pedras como em outras
regiões da América do Sul. Então, é muito difícil encontrar estruturas
arqueológicas de pedra. Mas esses outros indícios que mencionei nos permitem
ter ideia de como foi o povoamento no passado, antes que a população original
fosse destruída aos milhões pelas doenças trazidas por europeus, pelas
tentativas de escravização ou pela matança pura e simples”, argumenta Neves.
Ação humana
Outro indício importantíssimo da presença humana é dado pela
própria composição vegetal das matas amazônicas. Existem cerca de 16 mil
espécies de árvores conhecidas nesse bioma. Desse conjunto, apenas 227
espécies, ou seja 1,4%, correspondem a quase a metade de todas as árvores
existentes na região. Essa hiperdominância observada hoje foi, em grande parte,
fruto do manejo humano no passado. “A ideia, ainda muito difundida, de uma
formação florestal virgem, intocada, não corresponde à realidade. As florestas
amazônicas são produtos da ação humana. O manejo criou a composição de árvores
que existe hoje”, afirma Neves.
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As árvores que se tornaram hiperdominantes devido ao manejo
incluem espécies muito importantes do ponto vista econômico e social, como o
açaí, o cacau, a castanha, a seringa e o cupuaçu.
A compreensão do papel desempenhado pelo manejo florestal
não revolucionou apenas o entendimento da Amazônia: colocou em questão também o
emprego rígido de categorias historiográficas, como paleolítico, mesolítico e
neolítico. “Antes se dizia que as populações indígenas da Amazônia não haviam
completado sua transição para o neolítico, devido à dependência que ainda
mantinham em relação a espécies não domesticadas, como o açaí e a castanha. Mas
hoje compreendemos que essas plantas não foram domesticadas porque não havia
necessidade. A mandioca e o cacau foram domesticados. Mas o açaí e a castanha
estavam logo ali, na mata, e não era preciso domesticar, bastava manejar para
obter abundância”, sublinha Neves.
Por isso, o pesquisador afirma que arqueologia não é apenas
sobre o passado, mas também sobre o futuro. O entendimento do que já foi lança
luzes sobre o que ainda pode ser. “Há diferentes formas de viver e prosperar na
Amazônia. O modelo atualmente dominante, que derruba árvores, queima a mata,
esburaca a terra, contamina os rios e transforma a paisagem exuberante em uma
terra desolada, não é o único possível. É possível viver na e da floresta sem
destruí-la. E as populações que vivem desse jeito, indígenas, ribeirinhos,
quilombolas, são os grandes guardiães não apenas da floresta viva, mas também
dos tesouros arqueológicos que ela esconde”, enfatiza.
Neves acredita que esta é uma das grandes lições que podemos
aprender com o estudo do povoamento original. Discordando da contagem oficial,
que fala em 6 milhões de indígenas em todo o território brasileiro por ocasião
da chegada dos colonizadores portugueses, ele afirma que apenas a região
amazônica teria abrigado de 8 a 10 milhões de pessoas. “A estimativa de 6 milhões
está claramente subestimada. E essa subestimação faz parte de uma tentativa de
apagamento da presença indígena. Os estudos recentes indicam uma população
muito maior. É claro que podem ter ocorrido avanços e recuos populacionais.
Nossos registros mais antigos chegam a 8 mil anos. E encontramos hiatos nesse
longo período. Mas temos evidências de uma ocupação contínua nos últimos 2.500
anos”, diz.
Segundo o pesquisador, é complicado pensar na existência de
grandes cidades amazônicas, nos moldes das cidades antigas do Oriente Médio ou
da América Central. Ele classifica os povoamentos mais populosos com a
denominação técnica de “urbes tropicais de baixa densidade”. Mas informa que
estas abrigariam alguns milhares de indivíduos e seriam conectadas por uma rede
de estradas cujos vestígios têm sido descobertos. “Quando Santarém foi fundada,
em 1661, havia nela 6 mil indígenas. Essa população era quatro vezes maior que
a do Rio de Janeiro na época”, conta.
O enorme recuo populacional causado pela colonização só foi
revertido nas últimas décadas, pela chegada de contingentes populacionais
provenientes do Nordeste e do Sul e por um processo de urbanização acelerado,
caótico e altamente impactante para o meio ambiente.
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Mas, sob a epiderme dessas rupturas e traumas sociais, Neves
percebe um fio de continuidade. “A arqueologia está muito perto da vida das
pessoas”, diz. “Quem anda pelo interior da Amazônia e visita as comunidades
indígenas, os locais de moradia de caboclos, percebe que é muito comum que as
pessoas vivam sobre os sítios arqueológicos. Isso não é à toa. Geralmente são
esses os terrenos de solos mais férteis, onde estão as castanheiras, os
açaizeiros e outras plantas disseminadas pela atividade humana no passado.”
A pesquisa de Neves foi apoiada pela FAPESP por meio de
cinco projetos (19/07794-9, 05/60603-4, 17/11817-9, 99/02150-0 e 02/02953-0). E
a FAPESP forneceu também outros apoios – entre eles, dezenas de bolsas de
iniciação científica, mestrado, doutorado, pós-doutorado e estágio de pesquisa
no exterior concedidas aos orientandos de Neves.
Com 224 páginas, o livro Sob os tempos do equinócio: oito
mil anos de história na Amazônia Central pode ser adquirido pelo site:www.ubueditora.com.br/equinocio.html.