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Autobiografia revela intimidade do Papa Francisco

 Entre abril e fevereiro deste ano, o jornalista Fabio Marchese Ragona manteve contato quase diário com o Papa Francisco
Entre abril e fevereiro deste ano, o jornalista Fabio Marchese Ragona manteve contato quase diário com o Papa Francisco

Renato Vasconcelos

SÃO PAULO, 21 (AG) – Entre abril e fevereiro deste ano, o jornalista Fabio Marchese Ragona manteve contato quase diário com o Papa Francisco. Às vésperas do 11º ano do pontificado (completados em 13 de março), o vaticanista italiano foi incumbido de fazer o líder da Igreja Católica revisitar o passado e resgatar memórias de quase nove décadas. As conversas se tornaram um trabalho de escrita a quatro mãos, com lançamento previsto para abril: “Vida: minha história através da História” (Ed. HarperCollins).

Em entrevista ao GLOBO – brevemente atrasada por uma ligação do Pontífice – Ragona falou da produção do livro e revelou um pouco do Francisco que conheceu.

Leia os principais trechos.

Como foi o contato com o Papa e as conversas durante a escrita do livro?

Foram quatro encontros, muitos telefonemas e várias trocas de e-mail. Mais do que entrevistas, o que tivemos foram conversas. Eu tentava aprofundar alguns aspectos da vida dele, e ele contava. À medida que eu ia preparando um capítulo novo, eu mandava para ele, ele lia e me ligava: “Vamos acrescentar isso, corrigir aquilo, troque essa vírgula de lugar”. Isso aconteceu muitas vezes, até durante o verão, quando eu estava na praia. Ele me ligou: “Está com tempo de trabalhar um pouquinho? Então entra embaixo do guarda-sol e vamos trabalhar.”

Podemos dizer então que o livro é uma escrita compartilhada, com a sua voz e a de Francisco dividindo espaço nas páginas?

Sim. Era interessante dar o contexto no qual se desenvolvia a cena. Sou jornalista de TV, então eu imagino tudo em termos de imagem. Eu queria dar oportunidade às pessoas de ver aquilo que está escrito, e dentro daquele contexto inserir as palavras do Papa: a maneira como ele conta cada cena e momento específico.

Como o Papa enxerga a própria vida? Ele é alguém que fala das memórias com pesar ou está bem resolvido com o passado?

É muito interessante ouvir as anedotas de sua vida e as histórias de quando era padre jesuíta na ditadura de Videla, na Argentina, e os anos em que morou em Córdoba, quando foi mandado para um exílio. No primeiro caso, me chamou atenção o fato de que ele não se arrepende de suas ações, mas reparei que sofre muito quando fala da época de Videla, pelos jovens “desaparecidos” e pelos amigos que perdeu. Ele foi acusado de colaborar com a ditadura, e isso o feriu muito.

O que exatamente ele diz sobre o período da ditadura?

Ele fala sobre alguns episódios muito específicos, alguns em que colocou a vida de outras pessoas à frente da dele para tentar salvá-las. Ele disse que tinha certeza de que havia uma escuta telefônica em sua linha, e que tentava desviar a atenção falando coisas vagas. Ele aconselhou jovens sacerdotes a saírem em grupo e a não falarem muito, sobretudo com alguns capelães militares, porque temia que houvesse algum informante do governo. Ele diz ter certeza de que havia algum informante no colégio [Máximo, onde lecionou].

Quais as memórias mais surpreendentes sobre a juventude de Jorge Bergoglio?

Ele lembra do fim da Segunda Guerra Mundial, quando há o anúncio de que acabou a guerra, e vê a mãe e a vizinha chorando de alegria. Ele diz que o gesto mostrou o quão importante era a paz. Ali, teve sua primeira missão sobre o que é querer a paz. Outra anedota é de quando se tornou seminarista: no casamento de um tio, conheceu uma garota, que disse ser linda, e teve uma “paixonite”. Disse que não conseguia mais rezar, porque não conseguia parar de pensar nela. Mas a vocação prevaleceu.

Hoje, Francisco se entende um reformismo da Igreja Católica? Como ele avalia o próprio papado nesse sentido?

Ele fala que tudo o que fez e está fazendo foi pedido pelos cardeais antes do conclave. Eles pediram por reformas para a Cúria Romana, e foi isso que ele tentou realizar em seu pontificado. Ele tentou atender ao pedido dos cardeais de vários países, e quer que cheguem notícias de todas as partes do mundo, para que possa seguir adiante no pontificado e fazer o que precisa ser feito.

E o que o Papa fala sobre as disputas internas, principalmente com alas mais conservadoras da Igreja, que querem determinar os caminhos a serem trilhados pela instituição?

Conversamos sobre isso, e cheguei a citar um exemplo, em que ele foi acusado de estar destruindo o próprio papado por meio de seus gestos. Ele me respondeu: “Eu não posso acompanhar tudo o que as pessoas falam de mim, se não teria que ir ao psicólogo uma vez por semana.” Em conversas quase informais, falamos sobre as críticas ao papado, e o que ele sempre disse, muito serenamente, é que a Igreja é formada por muitas almas. Mas como há muitas almas, há muitos pontos de vista diferentes, e é justo que seja assim.

Ele fez alguma avaliação sobre as decisões recentes de autorizar a bênção a casais não-regulares e homoafetivos e à maior participação de mulheres na Igreja?

Em um trecho, ele fala sobre a bênção aos casais homoafetivos e irregulares, e diz que é um gesto de abertura para com essas pessoas, que no passado foram condenadas publicamente – um sentimento que não pertence à Igreja. Na minha opinião, o Papa entende que cada bispo terá a capacidade de discernir o que é justo a se fazer em seu rebanho, considerando aspectos culturais.

Como o Papa entende o próprio papel e o do Vaticano como parte da comunidade internacional, principalmente diante dos conflitos atuais?

Há dois canais nesse sentido: a diplomacia do Vaticano, que desempenha um papel importante em chamar os líderes internacionais para promover negociações e fazer com que as partes voltem a se falar. Francisco, especificamente, se propôs várias vezes a ser mediador. Não é um papel com interesse geopolítico, porque o Vaticano não é um Estado como os outros. Mas o Papa, como uma autoridade moral, precisa lançar palavras e mensagens para que haja gestos da sociedade civil.

O Papa entra no 12º ano de papado e está perto dos 90 de vida. Qual a visão dele para o futuro?

Acho que ele tem muitos projetos. Isso me mostra que não está pensando em deixar o pontificado, pelo contrário. Eu lhe perguntei sobre a visão que tem para a Igreja no futuro. Ele disse: “Espero que seja uma Igreja com muita compaixão, ternura e distante dos vícios, porque infelizmente tem um vício, o clericalismo, que é uma peste. Pode ser uma Igreja menor, mais pobre, mas com a consciência tranquila de ser uma Igreja pura, verdadeira.”