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“Alta Fidelidade”: como curar um coração partido

Todo romance é acompanhado por uma trilha sonora. É como se você chegasse a um restaurante e o sommelier, em vez de apresentar a carta de vinhos, colocasse à sua disposição uma relação de músicas, indicando a que melhor se adequa ao momento. Quer conquistar uma garota? Let’s Get It On, de Marvin Gaye, é a pedida; para quem está no comecinho, quando tudo são flores, cabe uma apaixonante My Love, da safra de Paul McCartney; mas se o amor passa por uma fase turbulenta, então a escolha será demorada, pois a música pop é prodigiosa em retratar corações partidos, fazendo você pensar até mesmo em “nunca mais se apaixonar de novo”, como na canção de Burt Bacharach e Elvis Costello.

Então, nunca duvide do poder da música. Ela dá significado à nossa vida, para o bem e para o mal. Não é por acaso que Rob Gordon se preocupa tanto com o dilema “gosto da música pop porque sou infeliz ou sou infeliz por gostar dela?”, justamente por perceber que a maioria das canções o convida a revisitar lugares que ele preferia que continuassem escondidos na memória, seja por lembrá-lo que um dia teve o mundo aos seus pés e agora não o tem; ou, o que é mais cruel ainda, por dar-lhe a esperança de um recomeço amoroso, com toda aquela enxurrada de sentimentos que ele conhece como ninguém, culminando com a perda total do seu lado racional, o que geralmente não acaba bem.

Mas esse pessimismo – ou realismo, dependendo do ponto de vista – tem razão de ser. Afinal, Rob acaba de levar um fora da namorada. Então, o baú está aberto. É nesse ponto que os homens, em toda a sua imaturidade e insegurança, se revelam e Rob é a prova viva disso. Embalado pela sua considerável bagagem cultural, ele traça um panorama bastante detalhado dessa curiosa espécie e que pode ser visto em “Alta Fidelidade”, filme de Stephen Frears, baseado no livro de Nick Hornby, com John Cusack como protagonista.

Dono de uma loja de discos, Rob está no fundo do poço aos 35 anos de idade. Passa os seus dias ao lado dos amigos Barry e Dick (os maravilhosos Jack Black e Todd Louiso, respectivamente, que roubam a cena toda vez que aparecem) elencando vários “Top Five”, os cinco melhores em qualquer categoria que envolva cultura pop. Para ele, é preferível gastar a sua energia dessa forma do que dar o braço a torcer e admitir o sofrimento pelo término do namoro com Laura, a mulher da sua vida. Mas, paradoxalmente, é aí que as coisas começam a se encaixar, já que ele resolve, por vingança, fazer um top five dos piores “pés na bunda” que levou e deixar o mais recente de fora. As lembranças o carregam ao reencontro com suas ex-namoradas e, consequentemente, a uma jornada de autoconhecimento.

Essa jornada não está livre de percalços e erros. Afinal, Rob não se furta de meter os pés pelas mãos – e o faz conscientemente. Ele se julga por esse comportamento infantil e ridículo ao mesmo tempo em que sabe que esta é a sua natureza. Chega a um ponto em que se pergunta: quer Laura de volta de verdade ou é apenas um capricho? Nesse aspecto, um dos grandes trunfos do filme é a quebra da quarta parede, com Rob expondo diretamente ao espectador seus pensamentos, frustrações e planos. Isso dá às experiências de Rob um tom mais intimista, o que nos leva desenvolver empatia e certa cumplicidade com ele, mesmo que reprovemos grande parte de suas atitudes.

Ponto também para a interpretação de Cusack, que dá ao seu Rob um ar de bobo e simpático, e que realmente transparece o conflito interno por ser quem é e pelo que faz, suavizando a negatividade que seu personagem carrega e que no livro é um pouco mais acentuada – não à toa o sobrenome de Rob aqui é outro; no livro ele se chamava Fleming e não Gordon. Quando ele busca refúgio nas “coisas que importam”, como discos, livros e filmes, a conexão é imediata. O que também permite a “Alta Fidelidade” ser um prato cheio para toda a sorte de referências, especialmente musicais – e que trilha sonora potente temos aqui.

E assim, Rob, que antes não tinha a certeza de ser o protagonista da sua própria comédia romântica (quando adolescente, ele certamente se imaginou em um videoclipe sentado no banco do ônibus e ouvindo música no fone de ouvido), vai tentar passar por cima de todas as suas neuras sobre sexo, paixões avassaladoras e instantâneas – que esbarram no medo do compromisso -, e cafajestadas do pior tipo, para permitir a chegada da maturidade. No final, a meta é vencer a crise dos 30 anos, toda a rejeição, a dor e o sofrimento expressos em suas canções preferidas para se dar bem e, finalmente, deixar de ser o vilão da sua própria história e ser feliz. Aí é só ligar o som e relaxar.

Mas, ei, caso a vida pregue uma nova peça, lembre-se: assim como Rob, você pode dividir todas as músicas com alguém especial, mas Beatles é uma entidade pessoal e intransferível, e os garotos de Liverpool sempre poderão vir ao seu socorro. “Beatles pertencem a mim, não a mim e Laura, ou a mim e Charlie, ou a mim e Alison, e embora me façam sentir algo, não me farão sentir nada de ruim”. Nessa, Rob mandou bem.

ONDE ASSISTIR

  • “Alta Fidelidade” está disponível para streaming no Star+.

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