A nova diretriz do uso da força e o velho hábito de culpar os mortos

Ana Maria Magalhães de Carvalho (*)

A Portaria 855/2025 inaugura um marco normativo sobre o uso da força, mas o desafio maior é cultural: romper a lógica da autolegitimação da violência.

A Portaria nº 855/2025, do Ministério da Justiça e Segurança Pública, representa um ponto de inflexão na política de segurança brasileira. Mais que uma atualização técnica, o texto busca reposicionar a cultura policial diante de um tema que o país insiste em naturalizar: a morte como desfecho aceitável da ação estatal.

Por décadas, a letalidade policial foi tratada como efeito colateral inevitável do combate ao crime. Essa lógica distorce a ideia de legítima defesa e consolida um terreno simbólico onde a violência se justifica a si mesma. A nova Portaria, ao enfatizar legalidade, proporcionalidade e desescalonamento, tenta romper esse padrão.

O uso da força e o direito à vida

O texto é direto: o uso de arma de fogo é último recurso. Disparos contra pessoas em fuga desarmadas ou em “resistência” são ilegítimos. A norma exige registro, controle e comunicação imediata ao Ministério Público em casos de lesão ou morte — concretizando o princípio constitucional de que ninguém pode ser privado da vida de forma arbitrária.

Mais que regras operacionais, o dispositivo busca reconstruir o sentido ético do poder policial. Ao exigir transparência, capacitação e instrumentos de menor potencial ofensivo, propõe uma política de contenção do poder letal do Estado — passo civilizatório em um país onde a fronteira entre autoridade e arbítrio ainda se confunde.

A Inversão da Culpa e a Letalidade Policial

Mesmo assim, após ações letais, repete-se o mesmo enredo: o morto é descrito como quem “reagiu”, “desobedeceu” ou “parecia armado”. A narrativa desloca o foco da ação policial para a conduta da vítima, que passa a carregar a culpa pela própria morte.

Esse mecanismo é estrutural — protege a instituição e desumaniza o sujeito morto. É o que permite que a letalidade se reproduza sem choque moral. A Portaria tenta enfrentar essa distorção ao exigir documentação minuciosa de cada disparo e comunicação obrigatória ao Ministério Público, limitando o espaço da “versão conveniente”.

Desafios Culturais e a Busca por Dignidade

Nenhuma norma é suficiente se não houver mudança cultural. A ideia de que “bandido bom é bandido morto” não se dissolve por decreto. A superação desse imaginário demanda formação técnica e também trabalho simbólico: restaurar o valor da vida — inclusive a do suspeito.

A Portaria é ambiciosa justamente por isso. Ao impor uso de câmeras corporais, controle público de dados e reavaliação periódica da habilitação para armas, transforma atos isolados de força em atos de responsabilidade pública, obrigando o Estado a olhar para si mesmo.

A Ética por Trás da Segurança Pública

A Portaria nº 855/2025 não resolve a letalidade policial, mas afirma um mínimo ético: a força não pode ser confundida com poder, nem a morte com justiça. Ela impõe que, sempre que um cidadão morre numa operação, o Estado — e não a vítima — deve se justificar.

Enquanto a culpa continuar recaindo sobre os corpos caídos, a violência seguirá mascarada de ordem. A norma, ao deslocar o eixo da narrativa e da responsabilidade, oferece ao país uma chance rara: a de reescrever, com dignidade, a relação entre força e vida.

Ana Maria Magalhães de Carvalho

Promotora de Justiça

Mestre em Segurança Pública (PPGSP/UFPA) e em Direitos Humanos (UFPA)

Ex-coordenadora do Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (GAECO)

Editado por Clayton Matos