Fábio Nóvoa

“Propriedade” escancara o horror da luta de classes

FOTO: divulgação

De alguma forma, o conflito de classes quase sempre norteia a direção seguida pelos trabalhos audiovisuais brasileiros. Porém, se na maioria das vezes, essa disparidade fica no terreno da poetização ou do denuncismo puro, há casos em que o enfrentamento vira uma opção narrativa. Como é o caso de “Bacurau”, de Kleber Mendonça Filho, e “Propriedade”, de Daniel Bandeira, que chegou à Netflix.

Se no caso da obra de Kleber, o embate vai do dito civilizado até o sertão desconhecido, no atual é o inverso. Aqui, um casal formado por uma mulher traumatizada com a violência urbana (Malu Galli, assustadora) e um empresário (Tavinho Teixeira) decide ir até a fazenda deles, mas o que eles encontram são funcionários revoltados com a possível venda da propriedade (além de irregularidades como apreender os documentos), decididos a tomarem a iniciativa de lutar contra isso a ferro e fogo. Em uma sequência sanguinolenta, a mulher foge e o único refúgio da fúria popular é o carro recém blindado deles.

O primeiro elemento perceptível do trabalho de Bandeira é que as referências são sempre diretas (como o cachorro preso pela porta de vidro) e a direção é nua e crua, sem tempo a perder. Se por um lado, dá para entender as motivações de alguns personagens, faltou trabalhar melhor os conflitos e camadas de outros, o que tornaria os atos do filme muito mais impactantes e os impulsos violentos menos grosseiros. O elenco, quase todo desconhecido, também não decepciona, com destaque para Galli, a atriz mais experiente.

Mesmo assim, é na violência gráfica e na trama do absurdo que ele extrai os principais elementos narrativos da trama, sem apelar para maniqueísmos dramáticos, levando todos para o terreno da raiva e do conflito. O diretor também sabe trabalhar com o suspense, principalmente quando precisa apelar para o ambiente claustrofóbico do veículo, o que lembra clássicos clichês de ataques em filmes de zumbi.

Há referências também aos filmes de Sam Peckimpah, Quentin Tarantino e o encadeamento de absurdos da filmografia dos irmãos Coen. No caso do filme brasileiro, tudo escalona em tensão e mortes até um labirinto sem saída de ódio e vingança, onde a violência vira pergunta e resposta ao mesmo tempo, descambando para um final angustiante e impactante. Se tiver estômago, veja na Netflix e prestigie o cinema nacional.