Jeffrey Wright se mete numa enrascada literária em Ficção Americana. foto: divulgação
Há um risco muito grande do humor e da crítica em filmes de comédia “passarem do ponto” e virarem obras autoindulgentes, principalmente quando se toca em temas sociais mais sensíveis. Entre aqueles que apelam para a grosseria absoluta ou retratos literais (como muitos filmes do Eddie Murphy, por exemplo), há os casos que usam o sistema a seu favor, como é o caso do bom “Ficção Americana”, que possui indicações ao Oscar 2024 (cuja cerimônia ocorre no próximo domingo, 10) e que estreou sem alarde no Prime Vídeo.
Cord Jefferson é um estreante na direção em cinema, tendo alguns trabalhos de roteiro na televisão, e já começa com um ponto alto. Ele joga com as construções sociais e estereótipos sobre os negros na sociedade americana muito bem, inclusive no uso de maniqueísmos e trejeitos, mas evita se aprofundar em polêmicas, mantendo o foco nos diálogos afiados e dando espaço para o elenco brilhar.
A trama é adaptada do livro “Erasure” de Percival Everett, e conta a história de Thelonius “Monk” Ellison, escritor crescido em uma família de classe média que busca fugir das representações sociais dos negros, focando em uma literatura mais, digamos, intelectualizada. Porém, precisando de dinheiro e se vendo ficando para trás no circuito literário, cria um pseudônimo e escreve um livro ruim, como uma piada. Mas o sucesso vem e ele precisa manter uma persona teatral, enquanto tenta equilibrar os problemas financeiros e familiares.
Não há nenhuma novidade aqui, e a direção é até contida, a trilha sonora adequada e sem nenhum exagero estético. A força mesmo está nos atores e seus personagens: Jeffrey Wright é um protagonista sagaz e inteligente, mas nada inocente, enquanto Sterling K. Brown faz um irmão engraçadíssimo, que descobre a sexualidade tardiamente. Já a sempre ótima Issa Rae encarna uma escritora que acredita nas próprias bajulações que fazem para sua escrita ruim.
Entretanto, Jefferson mantém a trama aqui, no embate de personagens, e evita tocar em feridas mais profundas, sobre a mercantilização da pauta antirracista e a segregação cultural americana. De qualquer forma, é uma boa comédia e que deixa algumas reflexões sobre assuntos diversos. O filme “Ficção Americana” foi indicado aos Oscars de Melhor Filme, Roteiro Adaptado, Ator, Ator Coadjuvante e Trilha Sonora Original. É provável que não ganhe nenhum, mas já teve visibilidade este ano.