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Zeneida Lima, do corpo que ecoa a voz da natureza

Zeneida Lima completa 90 anos mantendo trabalho em defesa do meio ambiente e da pajelança cabocla
Zeneida Lima completa 90 anos mantendo trabalho em defesa do meio ambiente e da pajelança cabocla

Zeneida Lima completa 90 anos de idade neste domingo, 21. Pajé, ambientalista e escritora brasileira, ela criou a Instituição Caruanas do Marajó, com o objetivo de defender o meio ambiente e levar educação às crianças da Ilha de Marajó, no Pará. A liderança recebe com alegria a idade nova e deve comemorar o aniversário na própria casa.

Terceira de uma família de 12 filhos, Zeneida Lima nasceu em Soure, em 21 de julho de 1934. O pai, Angelino Rodrigues de Lima, além de importante político em Belém nos anos 1930 e 1940, foi prefeito e deputado. Advogado criminalista, teve importante ligação com Magalhães Barata e Justo Chermont. Sua mãe, Maria José Figueira de Lima, a segunda esposa de Angelino, foi uma mulher simples e cheia de fé, estudou em um colégio de freiras e vem dela a conexão de Zeneida com o cristianismo. Do pai, ela herdou o amor e os cuidados com a natureza, com quem aprendeu a plantar e a cultivar.

Completar 90 anos de idade é um grande presente de Deus e das forças da natureza que a acompanham nesta longa jornada, ela diz. “Olhar para trás e ver, que nestes 90 anos de vida, consegui transformar cada obstáculo e cada dificuldade em conquistas, me faz ser muito grata por tudo que vivi. A vida não é feita somente de momentos bons, mas devemos fazer com que esses momentos deem sentido a tudo que realizamos, para que possamos seguir em frente. Então, eu me sinto muito feliz por ajudar e continuar ajudando tantas pessoas e por contribuir para preservar e divulgar a crença na pajelança e os ensinamentos de amor e proteção à Mãe Natureza”, afirma ela.

PREDESTINADA

Ainda no ventre da mãe, Zeneida chorou, conta. É uma característica que só os pajés possuem, de acordo com os conhecimentos de sua aldeia indígena. Quando criança, ela soube que teria o dom da cura e do desconhecido, percorrendo um vasto caminho do místico, sendo guiada pelas forças naturais e pelos Caruanas, entidades encantadas viventes nas águas, de acordo com a crença da pajelança cabocla. Aos 11 anos, Zeneida tornou-se pajé quando iniciou o longo aprendizado sobre os mistérios da pajelança cabocla, as cerimônias das curas e os rituais místicos orquestrados pelo Caruana Norato Antônio, entidade que possui o dom da cura e da sabedoria.

“A pajelança representa um encontro entre os viventes e as energias da natureza existentes sob as águas, que são chamadas de encantados ou Caruanas. Esse encontro também envolve fé nessas energias e amor à Natureza, que é a origem e o fim de todas as coisas. Na pajelança se diz que eu nasci com o dom da cura porque fui escolhida por essas energias para que se manifestem em mim e possam ajudar os viventes que precisam. Então, como pajé, eu ajudo as energias da natureza a atuarem em favor da cura dos viventes, sempre que possível. E por isso também que insisto na mensagem de que devemos amar e preservar a natureza, porque nossa sobrevivência depende dela”, diz a pajé, em entrevista ao DIÁRIO.

Sua infância foi alegre, porém sofrida em muitos momentos e recheada de fatos extraordinários. Criada livre nos campos da Fazenda Independência, em Soure, que pertencia ao pai, costumava ir com a mãe e os irmãos colher açaí e frutas para ajudar na alimentação da família.

Aos 17 anos, casada com um oficial da Marinha, Zeneida mudou-se para o Rio de Janeiro, onde viveu por 27 anos. Trabalhou como garçonete e foi à luta para conseguir o sustento dos filhos. No Rio, ela também deu segmento a uma série de projetos, conheceu muitas pessoas influentes como o músico e compositor Aldir Blanc, o antropólogo Manoel Nunes Pereira e a escritora Raquel de Queiroz, de quem se tornou amiga e com quem criou a Fundação Caruanas. Seu trabalho de pajelança jamais parou onde havia florestas no Rio.

LITERATURA INDÍGENA

De volta ao Pará, deparou-se com uma nova pajelança sendo praticada por outros pajés, que assimilaram diferentes práticas e crenças. Para evitar o desaparecimento das ricas manifestações dos Caruanas, adotadas pela tribo dos Sacacas, Zeneida resolveu deixar como legado para futuras gerações esse registro da verdadeira e autêntica pajelança cabocla e caruana. Dessa forma, surgiu o seu primeiro livro “O Mundo Místico dos Caruanas da Ilha do Marajó”, onde ela narrou todo o seu aprendizado da pajelança cabocla e sua trajetória de vida e também abordou as práticas desempenhadas pelos pajés, até então jamais reveladas. Nesta época, concedeu uma de suas primeiras entrevistas à imprensa, ao então Caderno D, do DIÁRIO.

O livro foi adaptado pela Escola de Samba Beija-Flor de Nilópolis, que rendeu à agremiação o título de campeã em 1998 com o enredo “Pará, o Mundo Místico dos Caruanas nas Águas de Patu Anu”. Após a repercussão da obra, Zeneida seguiu com outras publicações, como o “Recado do Papagaio”, de histórias infantis; “Lendas da Amazônia de Pequenos Contos”; e o livro de poesias “A Estranha”. Em 2014, foi a vez do Boi Caprichoso, de Parintins, homenagear Zeneida Lima, sob o tema “Aldeia Xamânica”, quando o Caprichoso também foi campeão. A trajetória da pajé também teve outro momento marcante em 2021, quando recebeu o título de Doutora Honoris Causa pela Universidade do Estado do Pará (Uepa).

Zeneida conta que atualmente seu trabalho no Instituto Caruanas consiste em ajudar e orientar as crianças. “Nós ensinamos as crianças a terem amor e respeito à natureza e aos seus semelhantes, para que sejam bem encaminhadas na vida. Não é um trabalho fácil e é feito a muitas mãos, com parcerias de pessoas que nos ajudam sempre que possível”.

Há algum tempo têm ocorrido esforços, com iniciativas de várias origens, para a construção de um memorial em Soure, com o nome de Zeneida Lima. “O memorial vai ser um espaço para deixar registrada minha história, minha caminhada, como mais uma forma de ajudar a preservar a cultura da pajelança, para que esses ensinamentos, os instrumentos e o acervo dessa cultura fiquem registrados para as próximas gerações. Entendo que esse memorial tem muita importância para o Marajó e para a Amazônia”, considera.