Silvio Essinger
Agência O Globo/RJ
A memória oficial tende a associar a música brasileira nos anos 1980 à explosão das bandas de rock. Mas quem passar um pente fino pelos programas de auditório e de rádio do período vai esbarrar muito mais frequentemente mesmo é com eles: Michael Sullivan e Paulo Massadas, respectivamente um pernambucano (nome real: Ivanilton de Souza Lima) e um carioca, ambos hoje com 73 anos, que se reencontraram há dois anos para gravar “Sullivan & Massadas: retratos e canções”, série documental dirigida por André Barcinski, para o Globoplay.
Cantores de bailes nos anos 1970 (Sullivan ganhou esse nome ao gravar “My Life”, canção em inglês que estouraria na trilha da novela “O Casarão”, exibida em 1976), eles foram compositores da maior quantidade de hits, para as mais diferentes vozes e nos mais variados estilos, registrada ao longo da década seguinte. Deles, Tim Maia gravou “Me Dê Motivo” e “Leva”. Com Tim, Gal Costa imortalizou “Um Dia de Domingo”. Roberto Carlos, o Rei, estourou “Amor Perfeito”. Roupa Nova, este não seria o mesmo sem o impulso de “Whisky a Go Go”. Nem Alcione seria a rainha da dor de cotovelo sem “Estranha Loucura” ou “Nem Morta”. Pense ainda em Fagner (“Deslizes”), Joanna (“Amanhã Talvez”), Sandra de Sá (“Retratos e Canções”) e até na existência de Xuxa e do Trem da Alegria como artistas de palco e de disco: tudo isso é Sullivan e Massadas.
E tudo começou quando Paulo César Guimarães Massadas, que cantava e tocava baixo em bailes pelo Rio de Janeiro com os organistas Lincoln Olivetti e Lafayette e com a cantora Rosana, resolveu aceitar o convite de entrar para a banda de Michael Sullivan só “porque ele estava em uma gravadora”.
“Eu já estava de saco cheio de ficar fazendo baile, resolvi apostar naquilo e a gente fez uma amizade. Comecei a mostrar uma coisinha aqui, outra ali, e a gente foi se encaixando, amadurecendo uma maneira de compor”, conta Massadas, por Zoom, de Los Angeles, onde vive desde a dissolução da dupla, tocando projetos musicais de artistas americanos e latinos. “Percebi no Sullivan essa força do cara desbravador, enquanto eu sou um cara muito pensador. A gente ajustou isso bastante, trocou muito, para saber aonde realmente poderia chegar”, completa.
Cada um deles fazia letra e melodia, mas logo a divisão de tarefas ficou mais organizada. “O meu lance é trabalhar mais, observar o que está ao redor, trabalhar as ambiências daquele momento vivido. Então me joguei mais nas letras, e o Sullivan, nas melodias, coisa que ele fazia muito bem e muito rápido”, conta Massadas, para quem eles logo chegaram a uma forma muito natural de traduzir emoções em canções. “Cada música tem uma linha melódica e uma história para ser decifrada. Você pode escrever dez coisas diferentes em cima daquela melodia, mas uma é a perfeita, é a melhor. O alvo tem vários pontos, mas a gente só pensava na mosca.”
Depois de um bom tempo treinando a parceria com artistas do forró, veio em 1983 o primeiro hit nacional: “Me Dê Motivo”. Ao longo dos 11 anos seguintes, eles fariam algo entre 60 e 80 músicas daquelas que todo mundo sabia cantar. Segundo Paulo Massadas, a máquina da composição da dupla não obedecia a “uma tática só mecânica”: havia todo um processo de captação emocional, de lidar com o que o público quer, com a emoção e com a mensagem, a linguagem e o estilo de cada artista (“um é mais romântico; outro, mais agressivo; ou até vanguarda”). Logo, se deram conta que poderiam compor para qualquer artista.
“O principal é que a gente prestava muita atenção a tudo que estava ao redor, qualquer coisa que se mexesse, a gente decodificava aquilo. O passado do Sullivan é do Nordeste, todo aquele folclore riquíssimo. Quando juntou com o meu de carioca, ficou um manancial que a gente, de início, nem sabia que tinha! Hoje não sei como as pessoas podem compor sem ter tido essas influências”, admira-se Massadas.
“Vivemos num dos momentos mais ricos para a música, a década de 1980, ela abriu as portas para grandessíssimos intérpretes. E ainda tinha o Lincoln Olivetti (como arranjador), com uma sonoridade absurda, compatível com a do Quincy Jones nos Estados Unidos. Quando todos esses elementos se juntaram, a gente viu que tinha uma coisa poderosíssima”, diz.
Para Michael Sullivan, apesar das diferenças de classe social (ele chegou a passar fome no Rio, aos 19 anos), uma das razões de a dupla ter dado certo é a de que eles viveram “toda a música que aconteceu a partir dos anos 1950”: “No Rio, aconteceu de eu sair da rua e começar com uma banda de baile, Os Nucleares, com a qual conheci o Tim Maia e o Raul Seixas antes de eles estourarem. O Paulo era dos bailes, eu era dos bailes, nós cantamos todas as músicas da época, mesmo ele sendo mais do rock e eu, da black music. A gente falava a mesma linguagem, o tempo todo.”
André Barcinski, que conheceu a dupla na feitura do livro “Pavões Misteriosos” (sobre o pop brasileiro dos anos 1970 desprezado pela crítica), sempre sonhou com um livro ou documentário só de Sullivan e Massadas.
“Eles compuseram samba, forró, pop-rock, música infantil, trilhas de filmes, temas para programas de auditório. O Massadas fala que eles são a dupla que fez músicas em mais gêneros diferentes e não duvido. Os caras fizeram música para os Demônios da Garoa e para Tim Maia! E eles só tinham um concorrente na música infantil, o Balão Mágico, na gravadora CBS”, lembra ele. “Eles conseguiram entender a necessidade de todo tipo de público, do que é mais ‘chão’, como eles chamam, até o do suprassumo da MPB”.